Investigação

Fraude em cartões: PF conclui que Bolsonaro 'agiu com consciência e vontade'

PF concluiu que Bolsonaro “agiu com consciência e vontade em suposta fraude de cartões de vacinação contra a Covid que tiveram ele e a filha Laura como beneficiários

Por Renato Alves
Publicado em 19 de março de 2024 | 11:48
 
 
 
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A Polícia Federal (PF) concluiu que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) “agiu com consciência e vontade” no suposto esquema de fraude de cartões de vacinação contra a Covid-19 que tiveram ele e a filha Laura, de 13 anos, como beneficiários, conforme relatório que resultou no indiciamento do ex-chefe do Executivo e outras 16 pessoas

A equipe de O TEMPO em Brasília teve acesso à conclusão do inquérito, que tem 231 páginas e perdeu o sigilo nesta terça-feira (19) após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele detalha a investigação, com trechos de depoimentos e cópias de documentos que os investigadores apresentaram como provas. 

“Os elementos de prova coletados ao longo da presente investigação são convergentes em demonstrar que JAIR MESSIAS BOLSONARO agiu com consciência e vontade determinando que seu chefe da Ajudância de Ordens intermediasse a inserção dos dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde em seu benefício e de sua filha LAURA BOLSONARO”, diz trecho do relatório.

Segundo os investigadores, o tenente-coronel Mauro Cid, na condição de ajudante de ordens de Bolsonaro, imprimiu os comprovantes de vacinação falsas de Bolsonaro e Laura dentro do Palácio da Alvorada. Cid disse ter recebido ordem do antigo chefe para cometer a fraude.

“Resta evidenciado que Mauro Cesar Cid, no exercício das atividades de chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República, por determinação de seu superior hierárquico, solicitou a inserção dos dados falsos de vacinação contra a Covid-19 em benefício do ex-Presidente e de sua filha Laura Firmo Bolsonaro”, diz outro trecho do relatório da PF.

As informações, que haviam sido dadas por Mauro Cid em acordo de delação firmado com a PF, foram comprovadas por peritos na investigação que resultou no indiciamento de Bolsonaro, seu ex-ajudante de ordens e mais 15 pessoas. Caso o Ministério Público acate, eles vão responder à Justiça pelos crimes de associação criminosa e inserção de dados falsos em sistema público, que rendem até 12 anos de prisão, além de multa, conforme o código penal. 

Cid diz ter recebido ordem de Bolsonaro

Duas das páginas narram a confissão de Mauro Cid sobre a fraude que ele disse favorecer Bolsonaro e Laura. O ex-ajudante de ordens, que é coronel do Exército, afirmou ter sido procurado pelo então presidente após saber que ele tinha cartões de vacinação contra a Covid-19 em seu nome, da mulher e das três filhas, mesmo dizendo que nenhum deles nunca havia recebido dose alguma.

Ainda segundo Cid, Bolsonaro pediu que tudo fosse da mesma forma fraudulenta, com inserções de informações falsas no sistema do Ministério da Saúde. Cumprindo a ordem, Cid contou ter procurado Ailton Gonçalves Barros, ex-major do Exército que concorreu a deputado estadual no Rio de Janeiro pelo PL em 2022. 

Assim como já havia feito para Cid e família, Barros enviou os dados de Bolsonaro e Laura ao secretário de Governo de Duque de Caxias, João Carlos de Sousa Brecha, que usou suas senhas para inserir informações fraudulentas no Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), do Ministério da Saúde. Os beneficiados pela fraude nem precisariam dos cartões físicos de vacinação, podendo imprimi-los quando e onde quisessem.

Após ser comunicado do sucesso da fraude, Cid narrou que, por meio do CenecteSUS, imprimiu os comprovantes de vacinação em nome de Bolsonaro e Laura em uma impressora do Palácio da Alvorada e os entregou pessoalmente ao seu então chefe. Cid contou ainda que teve o cuidado de imprimir os cartões com em inglês porque sabia da intenção de Bolsonaro em usá-los para a planejada viagem aos Estados Unidos nos últimos dias do seu mandato, para não passar a faixa presidente a Luiz Inácio Lula da Silva (PL). À época, assim como a maioria dos países, os EUA exigiam comprovante de vacinação contra Covid-19. 

Com as informações de Cid, a PF conseguiu chegar a quem inseriu dados falsos no sistema do Ministério da Saúde. Na operação Venire, desencadeada em maio de 2023 para levantar provas sobre a inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19, agentes apreenderam a impressora que teria sido usada por Cid para imprimir os cartões de Bolsonaro. Assim como dito por Cid, peritos conseguiram comprovar que os downloads foram feitos dias antes e na própria data da viagem de Bolsonaro a Orlando, na Flórida, segundo relatório entregue ao STF.

Foram quatro emissões, sendo três em 22, 27 e 30 de dezembro de 2022. O ex-presidente embarcou para os Estados Unidos com a família em um avião da FAB em 30 de dezembro, horas depois do acesso ao sistema, ainda de acordo com a PF.

Confira ponto a ponto a investigação que resultou no indiciamento de Bolsonaro e mais 16 pessoas.

Quais são os crimes investigados pela PF? 

Os fatos investigados configuram em tese os crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores.

Quem teve os dados de vacinação incluídos no ConectSus? 

De acordo com o inquérito da PF, foram forjados dados do ex-presidente Jair Bolsonaro; a filha dele, Laura, à época com 12 anos; Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; a mulher, Gabriela Santiago Cid; as três filhas de Mauro Cid; além de Max Guilherme Machado de Moura e Sergio Rocha Cordeiro, ambos assessores e seguranças de Bolsonaro. 

A participação de Mauro Cid no esquema

  • Na época que a operação foi deflagrada, foram cumpridos 16 mandados de busca e apreensão e seis mandados de prisão preventiva, em Brasília e no Rio de Janeiro. Nesse contexto, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid foi preso. 
  • Ele é apontado como o principal articulador da fraude em cartões de vacinação contra a Covid-19. Ainda em maio do ano passado, durante depoimento à PF, o tenente-coronel ficou em silêncio sobre o caso. Mas, a mulher dele, Gabriela Santiago Cid, admitiu que usou certificado falso. 

Como funcionou o esquema

  • Os documentos apontavam que essas pessoas haviam sido vacinadas em Duque de Caxias, apesar de nenhuma delas morarem na cidade da Baixada Fluminense. O deputado federal Gutemberg Reis (MDB-RJ), que é irmão do ex-prefeito da cidade Washington Reis (MDB), foi apontado como intermediador dessa fraude. 
  • Eles teriam pedido a João Carlos de Sousa Brecha, secretário de Governo em Duque de Caxias, para inserir informações falsas no sistema do SUS sobre vacinação contra Covid-19, em meio à pandemia. 
  • Em 22 de dezembro de 2022, as doses foram registradas por João Carlos no sistema como se tivessem sido aplicadas em Duque de Caxias, entre agosto e outubro de 2022. O secretário foi preso à época. 
  • E, de acordo com a PF, em 27 de dezembro, os dados relativos a Bolsonaro e Laura foram excluídos do sistema de Duque de Caxias pela servidora Claudia Helena Acosta Rodrigues da Silva.

Outro registro de vacinação, dessa vez em SP

A PF, com base em levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU), identificou ainda um terceiro registro de vacina no nome de Bolsonaro – este, uma dose da Janssen supostamente aplicada em São Paulo.

Segundo a PF, quando Bolsonaro viajou para os EUA, essa era a vacina que constava em seu comprovante de vacinação. A CGU descobriu que a dose, supostamente aplicada em São Paulo em 19 de julho de 2021, só foi incluída no sistema do Ministério da Saúde em 18 de outubro de 2022.

Bolsonaro sempre disse ser contra vacina 

Na época da operação desencadeada pela PF, Bolsonaro afirmou em entrevistas que nunca se vacinou contra Covid-19 e que não houve adulteração nos registros de saúde dele e da filha. ele também já havia dito que não permitiria que Laura fosse vacinada.

Ao longo de sua gestão, Bolsonaro se recusou a informar se tomou a vacina contra a Covid-19. Questionado por meio da Lei de Acesso à Informação, o governo impôs um sigilo de até 100 anos aos dados sob a justificativa que isso se referia à vida privada do então presidente.

Em janeiro do ano passado, um grupo de hackers divulgou um cartão de vacinação que supostamente seria de Bolsonaro. Nele constava o registro de uma dose da vacina contra a Covid-19, que teria sido aplicada em uma unidade de saúde em São Paulo em 19 de julho de 2021. Era o mesmo já alvo de investigação da CGU.

Assim como Bolsonaro, Cid e outros ex-assessores próximos do ex-presidente atacaram as vacinas contra Covid-19. Chegaram a dizer inclusive que elas, em vez de proteger, deixavam sérias sequelas, principalmente em crianças. Também eram contra medidas de isolamento social.

Defesa fala em 'perseguição política'

Por meio das redes sociais, Fabio Wajngarten, que é advogado e ex-secretário de Comunicação do governo Bolsonaro, disse nesta terça-feira que é “um absurdo” e “perseguição política” o fato de a PF ter indiciado o ex-presidente por suposta fraude em cartão de vacinação da Covid-19. ele também afirmou que não teve acesso aos autos. 

“Na minha humilde opinião, o indiciamento de hoje, que até o presente momento a defesa técnica sequer teve acesso, é tão absurdo quanto o caso da baleia”, escreveu pelo X. Wajngarten justifica que enquanto Jair Bolsonaro foi presidente da República, ele estava “completamente dispensado de apresentar qualquer tipo de certificado nas suas viagens”.

Para Fabio Wajngarten o indiciamento também é uma “tentativa de esvaziar o enorme capital político, que só vem crescendo”. Mesmo inelegível, o ex-presidente tem rodado o país preparando pré-candidatos do PL para as eleições municipais. O advogado atacou ainda políticos alinhados a Bolsonaro que não estão sendo solidários ao ex-presidente da República neste momento. 

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