BRASÍLIA – Foragida na Itália, a deputada federal licenciada Carla Zambelli (PL-SP) distribuiu um documento intitulado “Dossiê Técnico de Defesa”, em que reitera inocência no caso da invasão aos sistemas do conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas reconhece iminente prisão e deportação para início do cumprimento da pena 10 anos de reclusão.
Ao longo de 10 capítulos, a parlamentar brasileira tenta sensibilizar o governo italiano e faz um paralelo com o caso de Henrique Pizzolato, ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil. Assim como Zambelli, ele fugiu para Itália, em 2013, após ser condenado pela Justiça brasileira.
Pizzolato recebeu pena de 12 anos e 7 meses de prisão por corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro, no processo do Mensalão – maior escândalo do primeiro governo Lula (2003-2006). Ele foi extraditado em 2015, após o Brasil atestar ao Conselho de Estado da Itália – última instância da Justiça do país europeu – que aqui havia presídios onde direitos fundamentais são respeitados.
Como no caso Pizzolato, a defesa de Zambelli busca que a ela sejam respeitados direitos fundamentais no cárcere a que poderá ser conduzida para cumprimento da pena imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelo hackeamento do CNJ. O nome da deputada está na lista de difusão vermelha da Interpol, dos foragidos mais procurados no mundo inteiro.
A confecção do “dossiê” de Zambelli foi divulgada nesta quinta-feira (19) pelo jornal "Estado de S. Paulo. Ele reproduziu todo o relatório da parlamentar, que tem cidadania italiana e, ao anunciar, em entrevista que havia deixado o Brasil, afirmou ser “intocável” na Itália. “Eles vão tentar me prender na Itália, mas eu não temo, porque sou cidadã italiana e lá eu sou intocável”, disse à CNN Brasil.
No entanto, agora, a própria defesa, conforme escrito no “dossiê”, reconhece que tal situação não garante a Zambelli imunidade absoluta, vez que a Constituição Italiana (artigo 26) permite a extradição de nacionais se prevista em tratado internacional – ressalvada a hipótese de crime político.
No relatório, o advogado Fábio Pagnozzi, que representa a deputada, aborda “nulidades processuais, violações a direitos e garantias fundamentais no curso da ação penal, bem como os aspectos de direito interno e internacional pertinentes”. Invoca a Constituição, Código Penal e de Processo Penal, Pacto de San José da Costa Rica, Convenção Europeia de Direitos Humanos, tratado de extradição Brasil-Itália, e relatórios de organismos internacionais sobre o sistema prisional brasileiro.
Diante da possibilidade de a deputada ser capturada pela Interpol e mandada de volta ao Brasil para cumprimento da pena, a defesa sustenta que “uma preocupação premente, especialmente considerando a possibilidade de execução provisória ou definitiva da pena imposta, diz respeito às condições carcerárias brasileiras e os riscos que elas representam aos direitos humanos básicos de qualquer pessoa custodiada, inclusive da sra. Zambelli”.
O “dossiê” Zambelli destaca que no caso de Henrique Pizzolato, a Corte de Apelação de Bolonha, na Itália, em 2014, “negou inicialmente a extradição do cidadão ítalo-brasileiro”. “Justamente por entender que as condições das cadeias no Brasil eram ‘dramáticas’, alertando que ‘o risco de um detento ser submetido a humilhações, torturas e violências ainda é concreto’ nas penitenciárias brasileiras”, argumenta Pagnozzi.
O advogado observa que no episódio Pizzolato, os juízes italianos citaram relatórios da Anistia Internacional e da Human Rights Watch “corroborando que os abusos contra presos no Brasil são endêmicos e que falta controle efetivo para impedir a violência de facções ou de agentes estatais”.
“Ressaltaram inclusive que compromissos e melhorias pontuais (como a indicação de que Pizzolato poderia ficar em um presídio específico, de melhor condição, como o Complexo da Papuda/DF) não eliminavam o risco concreto de tratamento desumano ou degradante, negando a entrega do extraditando naquele momento”, pontua o advogado.
Para ele, “tal fato exemplifica que, aos olhos da comunidade internacional, o Brasil não consegue assegurar padrões mínimos de direitos humanos em seus presídios, gerando desconfiança e barreiras em cooperações jurídicas”. “Embora posteriormente Pizzolato tenha sido efetivamente extraditado após recursos e garantias diplomáticas, aquele precedente evidenciou a gravidade da situação prisional brasileira perante tribunais estrangeiros.”
O dossiê de defesa enfatiza. “No caso de Carla Zambelli, uma eventual ordem de prisão a ser cumprida no Brasil ou via extradição demandaria garantias firmes de que sua integridade física e psíquica será preservada durante o cárcere. Qualquer indicação de que ela possa sofrer violência, ameaças ou privação de condições mínimas poderia ensejar medidas de proteção internacionais. O Brasil, por sua vez, tem o dever legal de adotar todas as providências para assegurar condições dignas a qualquer custodiado sob sua guarda, sob pena de responsabilidade internacional por violação de direitos humanos.”
Fábio Pagnozzi pondera. “Esse dever reforça a necessidade de olhar o presente caso com atenção: a concretização da pena não pode transgredir os limites da humanidade, sob pena de converter a sanção em pena cruel, o que é vedado absoluta e universalmente.”
Para a defesa, ‘a possível submissão de Carla Zambelli ao sistema penitenciário brasileiro acende um alerta de direitos humanos’. “O histórico e a conjuntura do sistema apontam que sua vida, saúde e dignidade podem ser colocadas em risco sério. Tal constatação não busca nenhum privilégio, mas sim a plena observância das regras internacionais de tratamento de presos, incluindo as Regras de Mandela (Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Presos) e as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre pessoas privadas de liberdade.”
Segundo o advogado, “qualquer indicação de que ela possa sofrer violência, ameaças ou privação de condições mínimas poderia ensejar medidas de proteção internacionais”. O relatório diz que “o Brasil tem o dever legal de adotar todas as providências para assegurar condições dignas a qualquer custodiado sob sua guarda, sob pena de responsabilidade internacional por violação de direitos humanos”.
O Dossiê Técnico de Defesa de Carla Zambelli inicia com acusações ao ministro Alexandre de Moraes, relator do processo que levou à sua condenação. O ministro teria violado o princípio do juiz natural ao permanecer à frente da investigação sobre a invasão do sistema de dados do CNJ – trama que teria sido concebida por ela, em parceria com o hacker Walter Delgatti Neto, e da qual o próprio Moraes teria sido vítima via a produção de um decreto forjado de sua prisão.
O documento que a deputada distribuiu encerra com uma “declaração formal de inocência” de Zambelli. “Nunca ordenou, incentivou, financiou ou participou, direta ou indiretamente, de qualquer invasão a sistemas judiciais ou falsificação de documentos públicos. Jamais sugeriu, desejou ou cogitou um ato criminoso contra o ministro Alexandre de Moraes, nem em sentido figurado, tampouco em instruções reais.”
O advogado afirma que Zambelli foi condenada ‘com base na palavra de um réu confesso que apresentou versões contraditórias, sem credibilidade e sem qualquer corroboração’.