O relatório final da CPI da Andrade Gutierrez apresentado pelo vereador Dr. Bernardo Ramos (Novo) na Câmara Municipal de Belo Horizonte encontrou “indícios e vícios de irregularidades” que teriam causado danos aos cofres públicos nos pagamentos feitos pela Prefeitura de Belo Horizonte à construtora Andrade Gutierrez por três obras realizadas na década de 80: a canalização do Ribeirão Arrudas, a duplicação do túnel da Lagoinha e a remoção dos aguapés da Lagoa da Pampulha.
De acordo com o documento, a comissão encontrou indícios de irregularidades não apenas no pagamento, mas também na contratação e execução dessas obras. O relatório tem que ser aprovado pelos demais membros da CPI e pode haver modificações. De acordo com o vereador, a votação está programada para acontecer no dia 24 de agosto.
No total, o relatório afirma que a PBH pagou R$ 633 milhões à Andrade Gutierrez, dos quais R$ 90 milhões foram pagos “a maior”, em valores da época. Atualizados com base em julho de 2020, o valor pago alcança R$ 1,4 bilhão, dos quais R$ 221 milhões “a maior”.
O pagamento "a maior" teria ocorrido devido à atrasos na quitação de três parcelas e na renegociação delas. Além disso, irregularidades na atualização dos valores devidos, que utilizaram como base janeiro de 1999 quando o contrato previa fevereiro, também contribuem para a conta.
O documento faz a ressalva de que os valores são uma aproximação e que, além de uma auditoria para confirmá-los, seria necessário uma “séria e profunda investigação” para se constatar a legalidade ou não das confissões de dívida feitas pela PBH em 1988, na gestão de Sérgio Ferrara, e em 1999, na gestão Célio de Castro, que foi a responsável por fechar o acordo que deu início aos pagamentos das parcelas anuais que se estenderam até 2013.
Se for constatado que a confissão das dívidas e o acordo para o pagamento foram ilegais, Bernardo Ramos estima que a Prefeitura de Belo Horizonte pode ser ressarcida em R$ 3,1 bilhões pela Andrade Gutierrez.
O vereador afirma que o objetivo da CPI é investigar o contexto da confissão de dívida feita em 1999 e os pagamentos posteriores feitos à empreiteira, e não a execução das obras e os contratos celebrados.
Por isso, ele recomendou, no relatório, que o processo seja encaminhado para a Polícia Civil, para o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), para o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG) e para o Ministério Público de Contas (MPC-MG) com o objetivo que estes órgãos examinem os fatos, aprofundem as investigações e responsabilizem agentes públicos e privados que tenham cometido eventuais irregularidades.
O relatório recomenda também que a Polícia Federal e o Ministério Público recebam cópias do processo porque, na época da execução das obras, o governo federal teria repassado dinheiro para que elas fossem quitadas.
Procurada, a Andrade Gutierrez não respondeu. Ao site G1, a empresa disse que as obras foram efetivamente realizadas e que as confissões de dívidas se deram de forma legal e regular.
"A Andrade Gutierrez Engenharia esclarece que toda a negociação da dívida da Prefeitura de Belo Horizonte com a empresa foi exaustivamente aferida por peritos, processos judiciais, pelo Ministério Púbico, pela própria Câmara dos Vereadores e pelos administradores do município, não dando margem para qualquer interpretação dúbia", diz a nota enviada ao site.
O atual diretor financeiro da Andrade Gutierrez, Gustavo Coutinho, disse que o valor devido pela PBH à construtora era muito maior do que o confessado pela administração municipal em 1999 e que houve um desconto de 76%. Já o ex-presidente da empresa entre 2008 e 2015, Otávio Marques de Azevedo, que também foi ouvido, disse não conhecer os termos do acordo firmado.
Um dos pontos levantados pelo relatório é que, em nenhum momento, no decorrer dos anos 90 e também na gestão de Célio de Castro em 1999, quando do fechamento do acordo de pagamento, a Prefeitura de Belo Horizonte questionou, no âmbito judicial, o mérito da cobrança da Andrade Gutierrez. O fato chama atenção porque a CPI das Empreiteiras, instalada em 1994, apontou indícios de irregularidades nas mesmas obras cujos pagamentos eram cobrados pela empreiteira, o que originou processos no TCE-MG para apurar o caso.
“Uma confissão de dívida que estava em andamento com indícios sérios de irregularidades é preocupante. A gente fica sem entender como um gestor público pode assumir dívida em cima de algo que ainda está sendo questionado”, afirma o vereador Dr. Bernardo Ramos (Novo).
Há ainda a tabela usada para calcular os juros. A forma adotada foi o uso de juros compostos, ou seja, a incidência de juros sobre juros, o que contribuiu para aumentar o valor pago pela prefeitura da capital.
“Adota-se uma tabela Price, que não tinha a obrigatoriedade de ser usada. Pode até ser o mais comum no mercado, em contrapartida ao juro simples que seria mais benéfico ao Estado”, explica Bernardo.
Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte disse que não teve acesso ao relatório da CPI da Andrade Gutierrez sobre os pagamentos efetuados pelas gestões anteriores.
"É importante lembrar que, no dia 2 de março deste ano, a Prefeitura entregou à Câmara Municipal 186 caixas com documentos referentes aos contratos firmados com a construtora Andrade Gutierrez no período de 1979 e 1987. Os documentos foram enviados em resposta a um requerimento da CPI", diz o texto.
Irregularidades
O relatório de Bernardo Ramos aponta que das 15 parcelas anuais, três “foram pagas com atraso, sem qualquer justificativa para tanto, sendo quitadas anos depois, com incidência de multas contratuais e reajustes”. Além disso, outra irregularidade foi encontrada: o contrato para o pagamento da dívida firmado em 1999 previa a atualização do valor das parcelas na data-base de fevereiro daquele ano. No entanto, os valores efetivamente pagos foram calculados com base em janeiro de 1999, o que aumentou o dinheiro desembolsado pela PBH.
Sobre a contratação e execução das obras em si, o relatório afirma que a relação da PBH com a Andrade Gutierrez foi caracterizada pelo superfaturamento das obras; contratação sem licitação, ora sem a previsão orçamentária necessária, ora com o contrato fechado após a execução da obra; e a celebração de termos aditivos que aumentaram significativamente o escopo, o valor e o prazo dos contratos.
Entre os contratos que foram apontadas indícios de irregularidades, o relatório menciona que em abril de 1989, a administração do prefeito Pimenta da Veiga removeu 25 hectares de aguapés da Lagoa da Pampulha ao custo de US$ 3.688 por hectare. Dois anos antes, em 1987, quando a Andrade Gutierrez prestou o mesmo serviço na gestão Sérgio Ferrara e retirou 60 hectares, o custo por hectare foi quinze vezes maior: US$ 56.373.
Já na canalização do Ribeirão Arrudas, um dos contratos, que tinha duração de pouco mais de três anos, recebeu diversos termos aditivos. Como resultado, “a execução das obras se estendeu por mais de 10 anos do prazo previsto inicialmente, que houve um acréscimo no objeto contratual em cerca de 100% (cem por cento) e que houve um aumento substancial do valor do contrato” aponta o relatório.
Semelhança com o caso de Betim
O relatório do vereador Dr. Bernardo Ramos (Novo) dedica um capítulo para analisar as semelhanças do modus operandi da Andrade Gutierrez em Betim e em Belo Horizonte. A construtora cobra uma dívida de R$ 480 milhões da Prefeitura de Betim por obras também realizadas na década de 80. O pagamento dos precatórios está suspenso por tempo indeterminado após uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
Uma CPI na Câmara de Betim concluiu que há ausência de comprovação da realização das obras e falsidade ideológica nos documentos do processo. Em abril deste ano, o procurador geral do município de Betim, Bruno Cypriano, informou que uma perícia realizada pela Polícia Civil confirmou que o documento da década de 80 em que a Prefeitura de Betim confessava as dívidas e é a base da cobrança realizada pela empreiteira, contém assinaturas falsas e foi fabricado.
Cypriano foi convidado pela CPI da Câmara de Belo Horizonte a prestar informações sobre o caso de Betim. O capítulo do relatório do vereador Dr. Bernardo Ramos aponta algumas similaridades na atuação da Andrade Gutierrez nas duas cidades.
“Notadamente: (i) a celebração de contratos amplos e genéricos no final da década de 70, início de 80, sucedidos por diversos aditivos contratuais; (ii) a execução de obras na década de 80; (iii) a majoração do valor da obra, decorrente dos aditivos celebrados; (iv) a autorização em lei para o reconhecimento da dívida; (v) a existência da Ação de Cobrança logo após o contrato de confissão de dívida; (vi) a defesa fraca e limitada do Município nas ações de cobrança propostas pela Construtora; (vi) a ocorrência de inversão de datas, com a formalização de contratos/aditivos após o encerramento destes; e, ainda, (vii) o possível superfaturamento de obras”, elenca o relatório.
Diante da constatação de que o documento utilizado pela Andrade Gutierrez para embasar a cobrança à Betim na Justiça era falso, o relator recomendou que seja feita uma perícia grafotécnica nas assinaturas constantes dos documentos de confissões de dívidas assinados por representantes da Prefeitura de Belo Horizonte em 1988 e 1999.