O comando do Congresso Nacional decidiu desafiar o Supremo Tribunal Federal (STF) e descumprir a decisão que determina que sejam divulgados os dados dos responsáveis pela indicação de verbas das emendas do relator, o chamado orçamento secreto. Em ato conjunto que será apreciado em plenário na próxima semana, apontou que a transparência só valerá daqui para frente. A decisão é perigosa, abre brechas para que outras decisões sejam desrespeitadas, e devolve o Brasil ao século passado em relação à transparência na execução do dinheiro público.
O argumento do Congresso para descumprir parte da determinação construída pela ministra Rosa Weber e referendada por outros sete ministros da Corte máxima do Judiciário brasileiro é o de que é impossível repassar tais informações pois elas não estão disponíveis. Ainda que fosse verdade, seria um absurdo. Como é que bilhões em recursos públicos foram indicados por parlamentares ao relator geral (leia-se na verdade a cúpula do Congresso), entregues como demanda ao governo federal e não há dados sobre os verdadeiros autores? E se lá na frente enxergarem irregularidades no uso dessa verba, não será possível saber quem indicou e se eventualmente pode ter faturado algo com isso? É inconcebível em um tempo moderno em que o Estado brasileiro avançou em mecanismos de transparência e passou a exigir que tudo seja feito às claras e aos olhos da sociedade e dos órgãos de controle. Não se pode aceitar que esses dados não estejam disponíveis.
Além do mais, a argumentação de que tais informações não existem não encontra amparo nos relatos de parlamentares que dizem que, sim, existem planilhas controladas pelo comando das duas Casas e, sim, é possível saber de forma pormenorizada quem sugeriu cada centavo das emendas do relator. Membros da imprensa, inclusive, relatam terem tido acesso a ao menos parte dessas planilhas. Imagine o tamanho do problema para o Congresso se amanhã ou depois elas aparecem aí nas páginas dos jornais.
Ainda que transparente de agora em diante, esse mecanismo de repassar verbas sem limite de valor e sem critério de equidade entre os parlamentares ataca frontalmente a Constituição. Ainda que a Carta Magna exija a igualdade na distribuição e execução de emendas individuais, é evidente que, no caso das chamadas emendas do relator, estamos diante de indicações individuais informais, disfarçadas de modo a driblar a regra. O objetivo do legislador ao determinar a equidade foi justamente impedir que as emendas fossem objeto de barganha política e chantagem em troca de votos no Congresso, o que flagrantemente acontece no caso das emendas de relator. E isso não pode ser normalizado.
A decisão da cúpula do Congresso também é perigosa do ponto de vista democrático, considerando que o descumprimento de uma ordem do STF pode contribuir para que outros também se arrisquem a fazê-lo. É importante lembrar que o presidente Jair Bolsonaro disse por diversas vezes que poderia descumprir decisões do Supremo. Uma dessas declarações, feita de cima de um carro de som no dia 7 de setembro, gerou inclusive uma mobilização por impeachment, que só foi paralisada após um recuo.
Chama atenção agora que a iniciativa de afrontar a decisão do STF conte com a assinatura do presidente do Congresso Rodrigo Pacheco, recém-filiado e pré-candidato do PSD, partido que puxou a mobilização pelo impeachment na ocasião da fala de Bolsonaro. É também surpreendente que alguém que está entrando agora na disputa presidencial tope assumir o ônus pesadíssimo de ser um dos responsáveis por manter escondidas informações que ajudaram a manter a articulação do governo por meio de barganha política. Parece-me um erro que terá consequências mais adiante.
Como a votação a respeito do descrito no ato conjunto ficou para a segunda-feira (29), em vez de ser realizada ainda hoje como estava previsto inicialmente, pode ser que, até lá, outra solução seja dada. Principalmente se a sociedade civil fizer a pressão necessária pela transparência dos dados. Se isso não acontecer, haverá no mínimo uma composição com o Supremo para que a desmoralização da Corte não seja completa. Uma alternativa é o próprio STF recuar, com o pedido feito pelo comando do Congresso após o anúncio de que publicaria o ato conjunto. Se isso acontecer, haverá uma tentativa de apontar pra sociedade que tudo foi resolvido dentro da normalidade. Já adianto: não vai colar.