O relógio apontava pouco mais de 31 minutos jogados no amistoso entre seleção brasileira e Fiorentina, em 29 de maio de 1958. Garrincha recebeu a bola na ponta direita e o saudoso locutor Fiori Gigliotti narrou assim, “Lá vem Garrincha, dribla um, passa pelo segundo, o terceiro já ficou para trás, vai em direção ao gol da Fiorentina, o goleiro permanece imóvel na linha de gol. Vai marcar Mané… opa, ele parou, pisou na bola, não acredito, torcida brasileira, é isso mesmo que ele vai fazer? Garrincha está esperando outro defensor para também driblá-lo, sensacional, passou pelo último e é goooool, do Brasil!”.
Poucos poderiam acreditar no que ocorreu. Após uma jogada cinematográfica, Garrincha, então com 24 anos, optou por deixar novamente um marcador para trás antes de fechar a goleada canarinho sobre a Viola por 4 a 0. O lance, apesar de belo, enfureceu a comissão técnica da seleção brasileira.
Para não tomar nenhuma decisão precipitada, o psicólogo Paulo Carvalhaes o chamou para uma conversa em particular e pediu que ele desenhasse algo. Após um círculo de gigante e um monte de palitos desconexos, o médico perguntou, atônito, o que diabos o craque queria demonstrar naquele momento. Rindo sem parar, o “Anjo das Pernas Tortas” disse que era o Quarentinha, seu companheiro de Botafogo. O Doutor pediu, então, que o ponta-direita fosse cortado da Copa do Mundo, pois era “uma criança em um corpo de adulto”. O veredicto foi acatado em partes, com Garrincha permanecendo no grupo, mas Joel assumindo o posto de titular para o Mundial.
Porém, bastaram-se dois jogos para a “molecagem” de Garrincha ser evocada. Após uma vitória sem sal contra a Áustria e um duro empate contra a Inglaterra, a comissão técnica reuniu-se para pedir sua escalação contra a fortíssima URSS. Ao seu lado, estrearia Pelé, jovem promessa do Santos, então com 17 anos. Era tudo que o Brasil precisava.
Dali em diante, o que se viu foi uma das duplas mais fantásticas que já pisaram nos gramados de todo o planeta. Após dar seu cartão de visitas com a vitória por 2 a 0 sobre a URSS, Garrincha, com o número 11 às costas, continuou assombrando o mundo, levando a seleção à final do Mundial, contra a Suécia. Na decisão, atuou como se fosse um jogo qualquer, deixando seus “joões” pelo caminho e ajudando a construir a goleada por 5 a 2. Sempre inocente, ao final do jogo, dirigiu-se a Nilton Santos e perguntou: “Acabou o campeonato?”. Ao receber a resposta positiva, reclamou: “que campeonatinho mixuruca, nem tem segundo turno!”. Além do lamento pela curta extensão do torneio, saiu de terras escandinavas sem gols. Entretanto, o protagonismo viria quatro anos depois.
Em 1962, ele e Pelé já eram consagrados monstros do futebol brasileiro. Já com a camisa 7, Garrincha viu o “Rei do Futebol” ficar fora de combate logo na segunda partida, após sofrer um estiramento muscular no empate sem gols contra a Tchecoslováquia. O temor pelo pior durou pouco.
Com atuações magistrais, Garrincha construiu boas jogadas para Amarildo tirar a seleção do sufoco no difícil embate contra a Espanha, na última rodada da primeira fase, e detonou a zaga inglesa com dois gols e vários dribles na vitória por 3 a 1, nas quartas.
Na semi, nova atuação mágica, desta vez contra os chilenos, donos da casa, quando Mané voltou a balançar a rede duas vezes na vitória por 4 a 2. Porém, ele ficou marcado por revidar uma pancada de Rojas com um chute. O peruano Arturo Yamasaki o expulsou de campo, tirando-o da final. Porém, uma manobra da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) permitiu que ele participasse da decisão contra a Tchecoslováquia. Única testemunha do pontapé, o assistente uruguaio Esteban Marino não apareceu para depor no julgamento. Dizem as más-línguas que a entidade tupiniquim bancou sua passagem para fora de terras andinas. O certo é que após o mundial, o auxiliar trabalhou na Federação Paulista de Futebol.
Liberado, Mané, ainda que muito marcado, teve boa atuação na vitória por 3 a 1 sobre os tchecoslovacos. Era a cereja do bolo da Copa do Mundo que pôde chamar de sua. Quatro anos depois, já em decadência e com uma artrose no joelho, Garrincha não conseguiu oferecer o que tinha de melhor para oferecer. Azar daquele Mundial.
Garrincha foi um dos personagens ímpares que tivemos ao longo da história, como bem retratou Carlos Drummond de Andrade certa vez. “Se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um Deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho”. Ninguém jamais o descreveu tão bem.