Os brasileiros são as principais vítimas nas competições sul-americanas. Mas o nosso futebol, os nossos campos, estão distantes de serem territórios livres de casos de injúria racial. Pelo contrário. Os registros se amontoam, como o mais recente deles, quando torcedores do São Paulo foram flagrados imitando macacos em direção à torcida do Fluminense. Entre 2014 e 2020, o Brasil teve em média um caso de racismo registrado a cada dez dias em jogos de futebol, incluindo competições oficiais, femininas e amadoras.
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Os números do Observatório da Imprensa nesse período apontam 287 casos, dos quais 169 ficaram sem nenhum tipo de punição e em 114 sequer os autores foram identificados. Apenas 39 acusados sofrem punição judicial, outros 25 pagaram com sanções esportivas e 40 clubes foram punidos. Para se ter ideia, só neste ano, 57 episódios de racismo aconteceram em jogos de futebol no Brasil, sendo 46 casos envolvendo apenas brasileiros.
O ex-goleiro Aranha foi vítima de injúria racial quando defendia a camisa do Santos, em 2014. Seu caso tornou-se um dos mais repercutidos no país, pois culminou na exclusão do Grêmio da Copa do Brasil, uma decisão histórica tomada pelo STJD. Oito anos depois do lamentável episódio, Aranha, em contato com O TEMPO Sports, não vê um aumento de casos, mas, sim, um crescimento das denúncias e da exposição por meio das ferramentas tecnológicas.
"Eu não acredito que os casos tenham aumentado e, sim, as denúncias. São as denúncias que têm aumentado. E esta exposição na mídia é porque todo mundo tem acesso a um celular com câmera, Nos estádios têm a câmera de segurança também, então estamos sempre sendo vigiados e é possível provar, agora, por meio das imagens. Isso tem exposto muitas pessoas com esse tipo de atitude ainda", observou o ex-jogador e hoje colunista e escritor.
As leis são brandas?
No Brasil, o Senado Federal aprovou em maio um projeto de lei que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo. Juridicamente, a injúria racial é diferente do racismo. Enquanto a injúria racial consiste na ofensa direcionada a uma pessoa valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade de indivíduos.
A pena prevista no texto a quem comete tais práticas em atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais pode ser de reclusão de dois a cinco ano mais a proibição de frequentar tais espaços destinados ao público por três anos.
No esporte, não há esta tipificação entre racismo e injúria racial como prevista na lei. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD, aponta em seu artigo 243-G, caput, a seguinte redação, verbis:
Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Incluído pela Resolução CNE 29 de 2009). PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais). (Incluído pela Resolução CNE 29 de 2009).
§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente. (Incluído pela Resolução CNE 29 de 2009).
§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias. (Incluído pela Resolução CNE 29 de 2009).
§ 3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170. (Incluído pela Resolução CNE 29 de 2009).
Há, portanto, um gargalo na interpretação dos artigos apresentados pelo STJD. O cerne da questão é o que o texto diz sobre a prática discriminatória ser praticada por um 'considerável' número de pessoas. Desta maneira, não há uma uniformidade no que seria o 'considerável', fazendo com que vários casos que passem pelo STJD não sejam punidos de forma adequada. É o que aponta José Quintana Jr., em sua coluna no 'Lei em Campo', recordando, inclusive, o caso do ex-goleiro Aranha.
"Um exemplo desta falta de uniformidade, está no julgamento ocorrido em agosto de 2014, o famoso “caso Aranha”. O Grêmio foi punido com a perda de pontos do jogo diante do Santos, por consequência, foi eliminado da Copa do Brasil do mesmo ano, após cerca de cinco torcedores na Arena do Grêmio fazerem sons e gestos chamando o goleiro Aranha de “macaco”. Cumpriu-se o artigo, compreendendo-se que o número de pessoas era considerável. Uma punição inédita, que parecia se tornar um marco no combate ao racismo no futebol. Porém, quase 8 anos depois, nunca mais se repetiu. Só a título de nova exemplificação, em dezembro de 2021, torcedores do Athletico Paranaense, pelo menos dois, conforme as imagens divulgadas no dia da decisão, fazem sinal passando a mão no braço, “destacando a pele branca”. No mesmo jogo, uma mulher no camarote do estádio fez uma imitação de um macaco. Nenhuma sansão foi apurada", recordou Quintana.
Que não calem a nossa voz
Envolvido no caso citado por Quintana, Aranha cobrou uma postura mais incisiva dos Tribunais, principalmente na defesa à vítima que denuncia o caso sofrido. O ex-jogador lamentou que os atletas que tomem tal postura tenham suas carreiras comprometidas.
"Eu acho que os tribunais esportivos poderiam pegar, sim, mais pesado, colaborar mais, contribuir mais, proteger mais a vítima, cobrar mais dos clubes e dos atletas, dos árbitros, um posicionamento mais firme, mais contundente, porque o jogador hoje fica desprotegido. Ele faz uma denúncia, não só de racismo, mas de qualquer tipo de discriminação, logo depois ele fica abandonado, sem nenhum respaldo. E aí a gente sabe, no decorrer da história, todo o atleta que se posicionou de alguma injustiça, ele teve sua carreira abalada de alguma forma, ele foi silenciado, ele foi apagado da história. Não é uma situação fácil de lidar", lamentou Aranha.
O ex-goleiro, no entanto, acredita que apesar de todas as dificuldades, este é o momento propicio para que o tema seja debatido. O assunto só será resolvido com discussões, exposição de ideias e a divulgação dos casos.
"A gente tem que ver por vários ângulos, tem vários pontos para serem levantados, questionados, mas a gente precisa fazer alguma coisa. E o momento é propício porque, felizmente, a gente vive um período onde as pessoas estão dispostas a debater o assunto. E não conseguimos resolver um problema sem falar sobre ele", finalizou Aranha.
Não podemos perder esta batalha
O racismo é o adversário. E ele não será contido em um simples 'piscar de olhos', ainda mais em uma região com evidentes disparidades sociais, econômicas e culturais. A dívida com a comunidade negra é enorme e não há uma vontade política das entidades que regem a modalidade para combater o racismo no futebol. As punições precisam ir além da letra, além do bolso. Elas precisam ir às arquibancadas, para que os clubes também possam incentivar seus torcedores a combater este mal. Mas é necessário muito mais. Um esforço conjunto de todos os agentes do mundo da bola e, evidentemente, uma transformação que transceda os campos e comece no seio da sociedade. O processo poderá ser lento, mas ele precisa ser maior do que faixas, do que pedidos. Ele precisa ser real.