A terapia de hoje, perdão, a conversa de hoje é uma longa e bela viagem a ser fotografada e registrada. Começou em Milão, Itália e está longe de terminar. Ela passa essencialmente pelos fascinantes labirintos da mente, com várias paradas e dias livres para pensar. Tem a estação Freud e a Leonardo da Vinci; passeia pelas artes, em especial o Cinema, porque “todas as representações artísticas são expressão de uma subjetividade e por isso importantes para a psicanálise”. Por que a psicanálise?
Porque nossa entrevistada é Cristina Medioli, italiana, radicada no Brasil, que lançou, recentemente, o livro, “Versões do corpo: um percurso na psicanálise e na arte”. Para vocês, um aperitivo: “atuando como psicanalista há mais de 20 anos, Cristina Medioli faz extensa análise das várias representações do corpo, trazendo como referência inúmeros exemplos vindos de diversas manifestações artísticas, embasada por um arcabouço teórico que vai muito além de Lacan e Freud, com destaque para vários de seus conterrâneos italianos.
Utilizando-se de casos clínicos e ao mesmo tempo de exemplos que passam por filmes e os movimentos praticados na dança, a autora analisa a relação entre várias desordens e suas origens psíquicas na inadequação entre o corpo real e sua representação, mostrando que há algo que sempre escapa das determinações sociais”. Enquanto aguardamos novas versões, deleitem-se e, principalmente, reflitam. No mais, sigam no Instagram: @versoesdocorpo
Cristina, saudade de Milão?
Gosto muito do Brasil, me adaptei muito bem, mas, claro, tenho saudade da minha terra. Quando volto para Milão, cidade onde morei quase 30 anos, tomo um banho de cultura, principalmente em mostras, museus e teatros. Tudo o que é representação ao vivo me entusiasma mais.
Foi o Brasil que te levou à psicanálise?
Aqui conheci algumas pessoas (futuros colegas) que, percebendo meu interesse, me incentivaram a fazer os cursos oferecidos em alguma instituição de psicanálise. Assim, aos poucos, o que era estudo teórico começou a gerar sementes para o reconhecimento do desejo de atuar como psicanalista, desejo que cultivo tanto com os atendimentos aos pacientes no ‘setting’ analítico quanto com a escrita e a divulgação da psicanálise.
Ter nascido na Itália, um dos berços da estética, das mais belas artes, ajuda a psicanalista?
Psicanálise e arte têm muito em comum. Na psicanálise a gente estuda as elaborações sintomáticas, mas Freud já reconhecia na arte um grande valor sublimatório para os conflitos inconscientes. Na capa do meu livro, “Versões do corpo: um percurso na psicanálise e na arte”, tem uma representação revisitada (a ideia do movimento rotatório da vida) do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci. É possível que, na hora da escolha, minhas raízes italianas tenham aflorado.
Ajudou e inspirou o livro, “Versões do corpo”?
A escrita psicanalítica não é para mim algo técnico, científico. Nela as experiências de vida do autor contam também, com certeza minhas vivências italianas influenciaram minha escrita. Em “Versões do corpo” são várias as citações bibliográficas de psicanalistas conterrâneos, assim como também as referências a representantes e divulgadores da arte italiana no mundo.
São infinitas as versões do corpo, com o belo e o feio?
Sim, acho que as versões do corpo podem ser infinitas. São representações subjetivas que se constroem na base do imaginário e do simbólico (fala) do “Outro” (o grande “Outro” da cultura). Para cada indivíduo o espelho reflete uma imagem “outra”, um “EU” Ideal imaginariamente completo. E vários podem ser os desdobramentos da imagem de si, que o sujeito faz para alcançar este ideal. Assim como vários são os outros que nosso espelho interior captura. Sempre teremos muitas versões do corpo. Seria então o belo o contrário do feio? Ainda assim não teríamos uma definição exata. Belo é aquilo que ilumina nossa alma, que transmite harmonia, sensação de prazer, é uma ausência de contraste. Enfim, um equilíbrio de emoções e energias.
Como vê o cinema em casos clínicos da psicanálise?
Alguns filmes, e trago aqui o exemplo do filme relatado no meu livro “Versões do corpo”, cujo título é “Um método perigoso”, são relatos de casos clínicos. A psicanálise nasceu da escuta de Freud das pacientes pelas quais os recursos da ciência não traziam melhoras sintomáticas significantes. O mestre começou assim a perceber que os sujeitos tinham algo a mais a ser dito a respeito do próprio mal-estar. Algo demandava uma escuta particular e cuidadosa de sintomas que os recursos farmacológicos não conseguiam silenciar. Nas mentes humanas existe um mundo submerso que influencia nosso comportamento e ao qual a arte e o cinema podem nos aproximar, nos lembrando que somos seres de desejos, submissos às leis da cultura. Enfim, a representação cinematográfica da “talking cure” ajuda na compreensão dos princípios teóricos da psicanálise, proporcionando assim a aproximação também do público leigo.
Quais outras artes no divã? A pintura? A dança?
Todas as representações artísticas são expressão de uma subjetividade e por isso importantes para a psicanálise. Os quadros de Salvador Dali são considerados expressões do inconsciente, as bailarinas de Degas sugerem uma ideia de movimento e o movimento é sempre preenchimento de um espaço vazio que, como sabemos, se aloja também no interno de cada sujeito. A dança com sua linguagem corporal pode enviar várias mensagens. Todas as representações artísticas, enfim, nos representam um pouco.
Existe uma ditadura do belo, nas artes e agora, principalmente, nas redes sociais?
- A realidade do mundo atual se baseia sempre mais sobre um alicerce de valores imaginários que fogem a comprovações científicas e que condicionam nosso conceito da estética. Não sei se falaria de ditadura, mas principalmente nas redes sociais existe uma uniformização homogênea tendencialmente autárquica a valores que se tornam coletivos por serem raramente questionados. É esta adesão que limita a emergência do novo, do fecundo e criativo; do produtivo e do belo.
Chico Buarque lamentou, em um antigo samba, que “a própria vida ainda vai sentar sentida, vendo a vida mais vivida, que vem lá da televisão...”. Hoje a vida mais vivida vem do Instagram?
Parece que, hoje, o paradoxo está na expressão “vida vivida” pois o que é mais “vivido” hoje é o mundo virtual. Diferentemente das TVs, os outros meios sociais permitem um diálogo e uma interação mais rápida e instantânea com o outro. Mas de qual outro se trata? Quem está do outro lado da tela? Em um programa da TV italiana especializado em assuntos científicos, um médico apontava o perigo das “fakes”. Comentava igualmente que a respeito das informações sobre os recursos para cuidar da saúde, uma pesquisa demonstrou que mais de 30% eram “fakes”.
Além de falsas, desinformativas!
O profissional alertava também que a desinformação – se referindo à falta de crítica e de conhecimento – é, por si só, uma doença, pois informações e orientações erradas e/ou perniciosas podem atrasar o diagnóstico das doenças, ademais, se o tratamento é tardio, a cura das patologias mais graves pode ser inviabilizada. É preocupante também a influência que as redes podem ter sobre os jovens, para muitos, a própria subjetividade ainda se encontra em formação e isto os torna mais permeáveis às influências externas.
Os jovens, mais suscetíveis, seriam “esponjas”?
É primorosa para os adolescentes a demanda de aceitação, reconhecimento e respeito em um momento em que as grandes mudanças corporais, que acarretam também mudanças psíquicas, geram no indivíduo grandes inquietações. Aderir a um grupo ou a uma ideologia pode fazer o jovem se sentir mais seguro, pois parte de um coletivo, mas devido também à pouca experiência de vida e a um simbólico, ainda em fase de evolução, ele pode ser carente de critérios avaliativos que o tornem mais crítico e o façam questionar a verdade das informações.
- Os mesmos jovens seriam também influenciados pela Inteligência Artificial?
Provavelmente serão sempre mais exploradas as facilitações que a inteligência artificial pode nos proporcionar. O perigo, porém, é que gere um pouco de atrofia em relação ao pensamento particular, singular e criativo. Se tudo já tem respostas, as nossas indagações pessoais, aquelas que realmente enriquecem a nossa experiência e trazem as nossas contribuições, parecem viver em estado de letargia. Não há aqui esforço pessoal de superação, daquilo que te leva a elaborações mais íntimas e profundas. Aquilo que agora pode parecer uma expansão de nós e do nosso potencial, no futuro, pode se transformar em nosso limite? Concluindo, acho que a IA pode, sim, trazer avanços consideráveis, principalmente nas áreas de trabalho onde se preza um conhecimento mais técnico e rápido, mas provavelmente não será assim nas áreas animistas e nas psíquicas, onde, ao contrário, são os momentos de pausa, de intervalo e suspensão que podem fazer emergir o desejo do sujeito.
E o fenômenos das “selfies”? O que revelam?
As “selfies” parecem ser um atestado de presença. Recomendo para isso a leitura do livro de Marcelo Veras, “Selfie, Logo Existo”, do qual também falo em meu livro. “Selfies” são principalmente importantes para os jovens que, como já falei, precisam de afirmação, reconhecimento e respeito. A “selfie” é a nossa imagem que podemos carregar no bolso, um reflexo de nós que só o outro veria, e que por isso desperta nossa curiosidade e interrogação: como o outro está me vendo? Qual é a imagem que já não me pertence mais? A resposta parece estar aí, gravada na pequena tela do celular. Outras vezes a “selfie” é só para comprovar a nossa presença em alguma cena ou contexto. Outras, ainda usamos para enviar uma lembrança para quem está longe de nós. Enfim, “selfies” são também formas de comunicação, mas temos que tomar cuidado para que o mundo do imaginário, que frequentemente as nossas fotos representam, não nos distancie sempre mais da nossa realidade.
O que queremos e quem somos nós?
Difícil responder em poucas palavras a pergunta quem somos e o que queremos – perguntas às quais os filósofos também sempre tentaram responder. Freud afirmava que o “EU” não é senhor na própria casa. É o “Outro” da cultura que nos acolhe e nos condiciona desde o nosso nascimento e talvez até antes, como a ciência médica está estudando em relação à sensibilidade fetal. Nascemos prematuros, incapazes de sobreviver se o nosso grito vital não é acolhido pelo outro e essa dependência faz sim, então, que o nosso desejo esteja sempre no campo do “Outro”. A pergunta necessária para nossa sobrevivência será sempre a ele direcionada: o que queres? É nas respostas do “Outro” que encontraremos quem somos. O caminho da análise, porém, pode nos ajudar a nos libertar das amarras do fantasma do “Outro”, possibilitando assim que nossos desejos mais recônditos e subjetivos possam enfim emergir.
Voltando à música, com Caetano Veloso, “a gente não sabe o lugar certo onde colocar o desejo”. Concorda?
O desejo, dizia Lacan, é o desejo do “Outro”. Nós o percebemos então de forma invertida, vindo do “Outro”. É difícil falar de algo que seja totalmente “nosso”, pois estamos imersos no banho da cultura que condiciona o que desejar. Considerando isso, conhecemos então o lugar certo onde colocar nosso desejo? A psicanálise respeita a subjetividade de cada um e não quer mostrar o lugar certo onde colocar o desejo, mas ajuda o despertar do desejo íntimo, subjetivo e particular de cada um. E agora, citando o título da música de Lulu Santos: “assim caminha a humanidade...”
Vem aí outro livro?
Sim, já escrevi alguns trabalhos para o próximo livro, serão outras leituras (versões) do corpo psicanalítico.