RIO GRANDE DO SUL. Símbolo da tradição de um povo, a mateira continua presente nos cenários de acolhimento da população do Rio Grande do Sul, que tenta se erguer após as fortes chuvas que atingiram a região. Seja nos abrigos, em hotéis ou até mesmo espalhados pelas ruas, há sempre uma cuia com a bomba, uma erva-mate e uma garrafa térmica com água quente para o preparo do chimarrão.
No Estado, o hábito de “matear” é tido como um ritual sagrado, além de compartilhado. Não é difícil passar por alguém tomando chimarrão e não receber um convite para também degustar a bebida considerada amarga por quem experimenta pela primeira vez.
Quem entrega a cuia, o faz com a mão direita, assim como quem a recebe. O gesto simboliza um aperto de mão na intenção de socializar. E a regra obrigatória é beber até “roncar”. Fora do “gauchês”, o termo significa tomar até que o ato de sugar a bomba, ou seja, o canudo de aço, faça o barulho que indica que a bebida acabou.
Os itens necessários para o chimarrão foram, inclusive, pedidos de doações por voluntários que trabalham em abrigos. Para quem não está familiarizado com as tradições do Estado, os pedidos podem parecer um tanto incomum. No entanto, eles têm se mostrado essenciais para manter o conforto afetivo de quem já perdeu muito na vida.
Tudo o que precisava para fazer o mate foi salvo pelo motorista de aplicativo e apicultor Eduardo Postingher, de 47 anos. Ele e a mãe, a aposentada Helena Postingher, de 74 anos, tiveram a casa em que moravam alagada no bairro Mathias Velho, em Canoas. “Isso aqui nós conseguimos tirar”, aponta, com orgulho, para a cuia, em um hotel já na cidade de Garibaldi, na Serra Gaúcha.
“Hora do chimarrão, hora de distrair um pouquinho. Esse hábito aquece o coração da gente”, explica a diarista Dione Alves, de 53 anos, que teve a casa alagada no bairro Rio Branco, também em Canoas. O momento foi registrado pela reportagem de O TEMPO no abrigo da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), um dos maiores montados na região metropolitana de Porto Alegre.
Quem está trabalhando também não deixou o hábito de lado. “Independente de tudo o que está acontecendo, a gente procura manter as nossas tradições. O chimarrão é uma delas, a gente não pode deixar se extinguir isso”, conta o soldado Spohn, de 40 anos. Ele atua na equipe de resgate do Corpo de Bombeiros na capital gaúcha.
“É uma água quente, então acaba nos aquecendo também internamente. Dá esse acalento também”, completa, lembrando do frio que faz na região e que piora em meio às operações na água.
A fonoaudióloga Camila Beal Licks, de 34 anos, também de Porto Alegre, está há mais de duas semanas como voluntária em uma tenda que disponibiliza bebidas quentes tanto para quem está a trabalho, quanto para quem precisa de uma atenção no momento difícil. Na mão, não falta a cuia.
“No início foi um pouquinho mais corrido, mas agora que a gente tem um pouco mais de tempo, a gente vem com o chimarrão para cá. Ele aquece fisicamente e emocionalmente, ele faz um carinho nesse momento difícil. Ele é tomado compartilhando com outras pessoas, então é uma troca", explica Camila.
A história dá conta que o chimarrão é uma herança indígena. Os colonizadores espanhóis, quando chegaram no século XIV, já teriam encontrado a planta nas terras de Guayrá, que hoje é o Paraná. Nessa época, os índios quíchuas, aimarás, guaranis e tupis que viviam ali já utilizavam uma infusão da erva. Os povos originários viam a bebida como uma fonte de energia.