Muitos mineiros, principalmente os mais jovens, podem até não saber quem foi Orlando Sabino. Esse nome, porém, foi associado a diversas mortes na década de 1970. O andarilho foi acusado de assassinar pelo menos 25 pessoas, 13 em Minas Gerais e 12 em Goiás, e 19 bezerros. Os crimes teriam acontecido principalmente em cidades do Triângulo Mineiro, como Capinópolis e Canápolis. Após os supostos crimes, Orlando ganhou a alcunha de “Monstro de Capinópolis” ou “Monstro do Triângulo” - como é conhecido até hoje por algumas pessoas. Uma tese de doutorado, no entanto, contesta essa versão dos fatos.
“Orlando Sabino: sujeito constituído pelas práticas discursivas na ditadura militar no Brasil” foi a tese apresentada pela pesquisadora Fernanda Gomes da Silva Nakamura para a pós-graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Segundo ela, que analisou reportagens publicadas na época, alguns indícios apontam que os crimes foram atribuídos a Orlando para encobrir mortes cometidas por policiais militares durante o ano de 1972, um dos períodos mais sombrios da ditadura militar brasileira (1964-1985).
“Laudos dos inquéritos apontam que um dos projéteis encontrados em uma das vítimas era de uso restrito dos militares. Era muito improvável que um andarilho conseguisse ter acesso a um material desse porte. Além disso, os crimes foram cometidos em diferentes lugares e em um curto espaço de tempo. Dificilmente alguém sem recursos se deslocaria com tanta rapidez para cometer todas as atrocidades atribuídas a ele”, diz.
O crime citado pela professora pode ser encontrado em um relatório da “Comissão da Verdade do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba”, responsável por investigar violações de direitos humanos durante a ditadura militar na região. Trata-se do homicídio de Oprínio Ismael do Nascimento, que foi cometido com o uso de uma arma de calibre 44, privativo do exército brasileiro.
Após ser acusado de diversos crimes, Sabino permaneceu internado por 38 anos no Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz em Barbacena, no Campo das Vertentes, apesar da ausência de provas conclusivas. Foi somente em 2009 que sua soltura foi determinada, por interferência da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais. Ele foi transferido para um lar de idosos, onde faleceu, em 2013 - aos 66 anos.
Orlando Sabino Camargo nasceu em Arapongas, Paraná, em 4 de setembro de 1946. De família pobre e camponesa e órfão de pai, Sabino tornou-se andarilho, chegando, nessa condição, no Triângulo Mineiro, já no início dos anos 1970.
Construção midiática
Fernanda aponta que a construção da imagem de Sabino na mídia foi fundamental para sustentar sua prisão, mesmo diante da ausência de provas concretas. Ele era descrito, constantemente, como um homem mau e de difícil captura. Aspectos “animalescos”, como olhos esbugalhados, vermelhos e a emissão de grunhidos, também eram citados.
“As matérias destacavam ainda que ele tinha longos braços e cabelos desgrenhados. A junção de texto e imagens ajudavam a construir a imagem de alguém que ‘parecia um monstro’. O fato de ele ser um homem negro, pobre e analfabeto também facilitava o caminho para convencer a população e justificar seu encarceramento”, diz.
A estudiosa defende ainda que o aspecto religioso, muito presente no cotidiano mineiro, também foi bastante utilizado na construção dessa narrativa. A marca do sobrenatural era usada constantemente como se fosse uma verdade absoluta, com matérias afirmando que ele “desaparecia virando fumaça” e apontando que Sabino desafiava as orações de beatas e pais de santo.
“A morte dos animais ajudou muito nesse discurso religioso. Era divulgado que ele usava a mesma faca para sacrificar os bichos e abrir latas de óleo para fazer comida. Isso cria um aspecto ritualístico e animalesco, fazendo com que ele pareça um homem sem sentimentos ou compaixão. A escolha dos entrevistados também não foi por acaso. Muitas eram beatas e pessoas religiosas, vistas como representantes de Deus”, aponta.
Para reforçar sua tese, Fernanda cita dois trechos de reportagens veiculadas em 1972 pela revista Veja. Em um deles, uma mulher descrita como “uma velha beata refugiada em Capinópolis”, afirma que Sabino “só pode ser a encarnação do diabo”. Um segundo trecho afirmava que Sabino “desafiava as orações intermináveis das beatas de Capinópolis, Canápolis, Vazante e Ituiutaba, e o poder dos mais conceituados pais-de-santo da região, convocados para colaborar nas buscas com seus auxiliares extraterrenos”.
“Tudo isso era veiculado como se fosse verdade. Também chama a atenção o fato de que Sabino nunca era ouvido pelas reportagens. Ele foi silenciado, prevalecendo apenas a versão dos fatos de um lado da história”, critica.
Vozes contrárias
Se a mídia foi responsável por fortalecer a narrativa de que Sabino era um “monstro”, ela própria também continha elementos que ajudam a questionar essa imagem. Fernanda cita o trecho de uma reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 1972, cujo título era “Interrogatório não permite afirmação sobre culpa de preso do Triângulo Mineiro”.
“Depois de interrogar Orlando Sabino durante quatro horas e meia, na presença de um psiquiatra, um promotor e um advogado, a polícia de Minas continua sem poder afirmar que ele, preso após 16 buscas ininterruptas, é realmente o criminoso que apavorou o Norte dos Triângulos Mineiros”, afirma o primeiro parágrafo da reportagem.
Outro trecho afirma que os policiais civis, quase todos, duvidavam da tese da Polícia Militar de que Orlando Sabino seria o responsável por todos os crimes cometidos. “Para praticar todos os homicídios que lhe são atribuídos pelos militares, o preso teria que percorrer mais de 700 quilômetros em pouco mais de dois meses, conforme a possível trajetória idealizada pela Polícia Militar”, aponta a reportagem.
Além disso, outros jornalistas se tornaram “vozes contrárias” à versão oficial dos militares, incluindo o uberabense Joaquim Borges. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, ele também desconfiou que a prisão de Orlando Sabino tratava-se de artifício utilizado pela ditadura para encobrir perseguições políticas a grupos de resistência aos militares que estariam se formando no Triângulo e arredores.
“Segundo o jornalista, o real objetivo das investidas estatais era a captura de Geraldo (ou Gerardo) Martinez Herrera, comunista paraguaio incumbido de organizar focos de guerrilha armada no interior do Brasil”, aponta o relatório.
Outro jornalista, Pedro Popó, residente em Uberlândia e natural de Estrela do Sul, também contestou a versão dos militares. Popó foi uma das únicas e últimas pessoas, com exceção de militares, autoridades policiais e judiciárias e profissionais da saúde, que teve contato com Sabino. Com seus estudos, publicou o livro “O Monstro de Capinópolis”, que, em pouco mais de cem páginas, relata o que apurou.
“Segundo o jornalista, que também depôs à comissão, Orlando Sabino revelou-se um homem pacato e que era descrito pelas enfermeiras como afetivo e infantil. Conforme afirmações de Popó, o suposto serial killer também teria tendências a concordar com tudo o que lhe fora perguntado, o que explicaria a maioria das confissões feitas quanto às acusações que lhe eram dirigidas”, afirma outro trecho do relatório.
Além disso, um outro trecho do relatório aponta que o tipo físico de Orlando também contradizia a versão monstruosa construída pela mídia. "Sua constituição física era decepcionante. Tratava-se, pois, de um jovem negro de vinte e cinco anos, estatura de 1,65 m e porte franzino, que muito destoava da figura do monstro criada pela mídia", afirma o texto.
A reportagem de O TEMPO entrou em contato com a Polícia Militar, mas não obteve retorno.