Sociedade

‘Heterofobia’ e ‘racismo reverso’ não existem; entenda por quê

Discriminação contra pessoas LGBTQIAPN+ ou negras é somente a manifestação mais evidente de problemas estruturais

Por Gabriel Rodrigues
Publicado em 30 de abril de 2024 | 06:00
 
 
 
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A sequência é previsível: um caso de LGBTfobia ou racismo ocorre, é noticiado e, em dezenas ou centenas de respostas nas redes sociais, comentaristas de internet equiparam o acontecimento a “heterofobia” ou a “racismo reverso”. Isto é, suposto preconceito contra pessoas heterossexuais e racismo contra pessoas brancas. Acontece que, na prática, concordam pesquisadores, esses conceitos não existem.

Antes de aprofundar a discussão, é importante esclarecer o que está envolvido na LGBTfobia e no racismo. Não se trata apenas de xingamentos ou ações preconceituosas pontuais contra pessoas LGBTQIAPN+ ou negras, mas de uma estrutura de discriminação. A professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Joana Ziller, coordenadora do Grupo de Estudos em Lesbianidades (GEL), explica melhor com um exemplo.

“Quando estou de mãos dadas com a minha companheira, ninguém me xinga na rua porque eu sou a Joana, mas porque estou de mãos dadas com uma mulher. É um xingamento que existe antes de mim, e só foi dirigido a mim porque eu estava naquele lugar e naquele momento”, diz. “Não existe ‘heterofobia’. Ninguém acha ruim um casal hétero andando de mãos dadas na rua. Mas, se eu ando, as pessoas olham torto, xingam. As pessoas que falam em ‘heterofobia’ não têm ideia do que é sofrer discriminação. Não tem nenhum vitimismo meu em dizer isso. É reconhecer uma realidade”.

O exemplo de Ziller ajuda a entender por que a LGBTfobia e o racismo são questões estruturais. Ou seja, não são direcionados a pessoas específicas. São um conjunto de ideias e ações repetido vez após vez há séculos, com manifestações na educação, na saúde, nas empresas, cujas consequências diminuem ou excluem os direitos de alguns grupos na sociedade. As ofensas ou xingamentos são apenas a manifestação mais óbvia desse extenso plano de fundo.

Um exercício para a maioria dos leitores compreenderem o quão disseminado está o preconceito é se lembrar do que aprenderam na infância, em desenhos animados, na família, na escola: o certo seria ser heterossexual, e o melhor seria ser branco.

Ziller continua: “a discriminação é algo que nos forma, que aprendemos desde que somos crianças. Desde antes de nascermos, estamos aprendendo, porque a cor do quarto e das roupas determina como devemos nos vestir, e há brinquedos de menino e de menina. Quando crescem um pouco, os meninos aprendem que devem namorar as meninas, e as meninas, namorar os meninos. A sociedade está montada para que os meninos gostem de determinadas coisas, e as meninas, de outras. Seriados, músicas e filmes nas paradas de sucesso falam sobre determinado tipo de relacionamento, então vamos entendendo que ele é o correto. Ninguém precisa ficar dizendo. A repetição nos leva a entender que um é correto e o outro, errado”, resume.

Cotidianamente, ela lembra, pessoas LGBTQIAPN+ e negras são privadas de direitos — até à vida. Dentre os países que fazem esse registro, o Brasil é o que tem o maior número de homicídios contra a população LGBTQIAPN+, por exemplo. Em 2023, foram contabilizadas 257 mortes violentas, segundo Grupo Gay da Bahia (GGB), que compila esse histórico. “Quando citamos esse dado, as pessoas dizem que o Brasil é muito violento e que tiveram um amigo hétero assassinado. Sim, mas ele morreu em um roubo, em uma briga. As pessoas LGBTQIAPN+ morrem em roubos, em brigas, mas também apenas porque são LGBTQIAPN+. Aí é que mora a diferença”, continua Ziller.

'Racismo reverso'

O Brasil contemporâneo foi construído com base em séculos de escravidão — estima-se que 4,8 milhões de pessoas foram trazidas da África à força para serem escravizadas do outro lado do Atlântico. O Brasil foi o país das Américas que mais escravizou e o último do continente a abolir a escravidão. É uma história com desdobramentos até hoje. A edição mais recente do estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), lista uma série de diferenças entre os indicadores sociais de brancos e negros. Os negros ganham menos — enquanto brancos recebem R$ 3.099, pardos recebem R$ 1.814, e pretos, R$ 1.764. A taxa de homicídios sobe de 11,5 mortes por 100 mil habitantes, no caso dos brancos, para 21,9 na população preta.

Uma pessoa branca pode ser ofendida pela cor de sua pele. Isso não quer dizer, porém, que tenha sofrido racismo, diz a doutora em comunicação social Pâmela Guimarães. Isso porque, como você já leu no início deste texto, uma ofensa racista é só a expressão mais evidente de um problema mais profundo.

A pesquisadora reforça por que não faz sentido dizer que uma pessoa branca sofreu racismo no Brasil. “O racismo não está apenas no âmbito individual, ele diz também do âmbito coletivo. Quando nos referimos a racismo, estamos falando de um sistema de opressão utilizado para oprimir um grupo minorizado na sociedade. Esse sistema utilizará a cor da pele para, cotidianamente, tratar um grupo como inferior. E, quando falamos sobre essa ideia de tratar um grupo como inferior, não é apenas na forma de se dirigir a essas pessoas".

"As pessoas são mortas pela cor da pele delas, são excluídas do mercado de trabalho pela cor da pele delas, têm menos acesso à educação pela cor da pele delas. Então, a inferiorização cotidiana é a materialização desse exercício de poder, desse sistema opressivo. E quando a gente pensa nisso com cuidado, é muito difícil pensar que uma pessoa branca sofrerá todas essas exclusões apenas porque alguém chamou ela de algum apelido ofensivo que teve a cor da pele dela como plano de fundo”, diz.

Quem tem uma fala ofensiva sobre a estética negra, por exemplo, reforça estereótipos que, histórica e cotidianamente, fazem com que pessoas negras sejam preteridas em entrevistas de trabalho ou perseguidas por seguranças em lojas. É importante, ainda, lembrar o fio da história que criou o cenário atual, continua Guimarães.

“Para existir racismo reverso, deveria ter havido, por exemplo, um período de escravidão em que os brancos fossem escravizados. Momentos históricos em que o branco foi desumanizado. Todos esses processos desumanizantes, que ocorreram com as pessoas negras, com os povos originários, enfim, o grupo branco deveria passar por isso para que pudesse, em algum momento, reivindicar esse lugar de vítimas de racismo, e isso não ocorreu. Em nenhum momento histórico o grupo branco foi minorizado. É importante destacar isso porque, como em nenhum momento histórico o grupo branco foi minorizado, ele não foi excluído. Portanto, hoje, embora possa sofrer questões sociais, como a ofensa individual, dificilmente a gente conseguiria alimentar algo contra esse grupo branco, que sempre foi considerado humano, belo, inteligente, apto para o mercado de trabalho, digno de receber uma educação. Na prática, é impossível que a gente consiga dar fôlego a essa ideia de racismo reverso”.

O que diz a lei

Pesquisadores sobre desigualdades não costumam utilizar o termo minoria, e sim grupos minorizados ou vulnerabilizados. É uma forma de descrever melhor por que os negros, embora sejam a maioria numérica da população brasileira, são minoria nas classes sociais mais altas e cargos mais elevados das empresas, por exemplo. Isto é, embora sejam maioria, têm menos acesso a oportunidades e direitos do que a população branca no país.

Para o presidente da Comissão Estadual de Diversidade Sexual, Gênero e Minorias da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG), Washington Fabri, a leis contra discriminação no Brasil são evidentemente feitas para proteger grupos minorizados. A Lei do Crime Racial (nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989) descreve que a “discriminação ou preconceito de raça, cor ou etnia” é crime, sem citar diretamente a população negra. Mas Fabri afirma que não há a menor dúvida de que ela foi criada para proteger especificamente as pessoas não brancas.

“A legislação sobre o racismo veio para grupos que historicamente sofrem discriminação, vêm da escravidão, são pessoas marginalizadas. Você não é marginalizado por ser branco, mas por ser negro. Por que existe a Lei de Cotas, por exemplo? É uma reparação histórica. Porque, se você avalia o Brasil estruturalmente, vê que a maioria das pessoas que abandonam a escola são pessoas da periferia, negras. A interpretação é muito fácil. Essas leis abraçam pessoas em situação de vulnerabilidade que, mesmo em maioria, tiveram seus direitos minorizados ao longo dos anos”. Na lei, a LGBTfobia é equiparada aos crimes de racismo e injúria racial, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Quero deixar uma mensagem para quem está lendo”, finaliza Fabri, “nós, como sociedade, como seres humanos, podemos combater esse tipo de preconceito todos os dias. Pode não acontecer com você, mas se você está vendo ocorrer com o outro, cabe denunciar”.

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