Enem dos Concursos

Jurista questiona regras de cotas para negros no Concurso Unificado; entenda

Comissão vai avaliar características fenotípicas de candidatos que se autodeclaram como pretos e pardos

Por Raíssa Pedrosa
Publicado em 07 de fevereiro de 2024 | 06:00
 
 
 
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A reserva de vagas para pessoas negras no Concurso Nacional Unificado, que encerra as inscrições nesta sexta-feira (9), chamou a atenção de um grupo de advogados especialistas em causas relacionadas a concursos. Segundo os juristas, os critérios para heteroidentificação (confirmação) dos candidatos autodeclarados negros não estão claros nos editais - o que poderia causar uma “chuva” de processos judiciais contra a banca examinadora e o Governo Federal por candidatos que, de alguma forma, se sentirem injustiçados.

Por outro lado, especialistas em políticas afirmativas apontam que os editais do concurso seguem exatamente aquilo que está exposto tanto na lei das cotas em concursos públicos (Lei 12.990/2014) - que reserva 20% das vagas e considera a autodeclaração de candidatos pretos ou pardos no ato da inscrição - quanto na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 41, de 2017) do Supremo Tribunal Federal (STF) - que acrescenta que é legítima a utilização de critérios de heteroidentificação, desde que respeite a dignidade humana e garanta o contraditório e a ampla defesa.

Vale lembrar que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entende como negras as pessoas pretas e pardas. 

Mas qual o problema dos editais?

O Enem dos Concursos segue um critério já utilizado em todo o país: a formação de uma banca para confirmar presencialmente aquilo que o candidato declarou no ato de inscrição - se é preto ou pardo. Em geral, essas bancas, formadas por cinco pessoas, analisam exclusivamente os traços fenotípicos dos candidatos para fazer essa confirmação. Elas também não consideram documentos ou qualquer outro argumento que seja levado pelo candidato, como dizer que já foi aprovado em outros processos seletivos usando as cotas.

De acordo com o advogado especialista em direito administrativo e ações que envolvem concursos públicos Israel Mattozo, a utilização apenas de fenótipos (na visão dele, algo muito subjetivo), sem considerar outras formas de confirmar o que o candidato declarou, pode ser desastrosa, visto que muitos candidatos pardos podem não ser “lidos” como negros pela banca e perderem as vagas. “A política de cotas é uma política com o objetivo muito claro de tentar corrigir um erro histórico que alcança aspectos socioeconômicos e culturais”, diz Mattozo.

Além disso, os editais apontam que “não será admitida, em nenhuma hipótese, para aferição da condição declarada pelo candidato no certame, prova baseada em ancestralidade”. Questão que é defendida por Mattozo: “Se uma pessoa é filha de um pai preto e uma mãe branca, concorda comigo que esse pai preto certamente teve grandes limitações de oportunidades? Ele sofreu diretamente e, por consequência, os filhos também”, argumenta, dizendo que o racismo atinge não apenas a pessoa como também seus descendentes.

O professor e presidente da comissão permanente de ações afirmativas e inclusão da UFMG, Rodrigo Ednilson, explica que as comissões de heteroidentificação, antes de tudo, são formadas para garantir às pessoas autodeclaradas negras o direito de entrarem por meio das cotas. Segundo o professor, essas comissões são como “os olhos” da sociedade e vão identificar pessoas com traços fenotípicos que estão sujeitas ao racismo - e isso não está diretamente ligado à ancestralidade. “É possível ter uma pessoa que é filha de negro, mas não é socialmente lida como pessoa negra, portanto, ela não é alvo potencial do racismo na sociedade brasileira”, diz.

Rodrigo lembra que nenhuma das legislações sobre o assunto considera a ancestralidade. “Essa heteroidentificação que se baseia no racismo é feita olhando o corpo e não a ascendência, e não a característica do pai, da mãe, da avó. E aí é isso que os ministros do STF, quando julgaram a ADC, estavam entendendo. É por isso que o critério único é o conjunto de características fenotípicas, porque no Brasil, diferente dos Estados Unidos, não é a gota de sangue que vai definir o grupo racial ao qual você pertence”, explica.

“Quase todos os concursos que usam banca de heteroidentificação instituem a possibilidade de ter uma banca recursal, ou seja, se a pessoa foi indeferida na primeira banca, ela tem a possibilidade de ser avaliada por uma banca com novas pessoas”, diz, lembrando do direito de ampla defesa do candidato.

A advogada criminalista Maria Fernanda Cagliari, do escritório Morad Advocacia Empresarial, reforça o ponto levantado pelo professor Rodrigo e pontua que os editais estão seguindo à risca o que está na lei. Ela ainda acrescenta que as bancas têm papel fundamental para evitar possíveis fraudes.

“Utilizar de uma banca de heteroidentificação não viola o direito daquele que pode participar do sistema de cotas. Ao contrário, garante que essa pessoa não seja vítima de uma outra oportunista que está tirando a sua vaga só por ser autodeclarar preto ou parto”, diz.

Qual a importância das cotas no serviço público?

O professor Rodrigo reforça que a política de cotas existe para superar marcas do racismo, mas mais que isso: quando se estabelece, dentro da administração pública, um mínimo de pessoas negras, também se estabelece um contato mais próximo aos grupos aos quais pertencem. Ou seja, torna a administração pública mais plural.

“Você tem um impacto no combate à desigualdade social. Então, a médio e longo prazo, você vai ter uma população negra que não está presente apenas em lugares de miséria, de subalternidade, de mendicância. Então, é uma forma também de combater estereótipos na medida em que você vai ter pessoas negras em diferentes espaços. Você reeduca as relações”, diz.

O que diz a lei?

O Art. 1º da Lei nº 12.990/2014 diz que “ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei”.

O Art. 2º diz que “poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.

Já decisão final da ADC 41, do STF, diz que “é legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”, sem citar a ascendência.

Quem cita questões relacionadas à ascendência é o Ministro Alexandre de Moraes, em sua argumentação para voto. “Para preservar a dignidade dos candidatos, o ideal é que o processo de verificação da autenticidade da declaração privilegie, inicialmente, registros documentais capazes de corroborar a afirmação dos candidatos. Isso pode ser providenciado pela apresentação de fotografias ou até mesmo por documentos públicos que assinalem sinais étnico-raciais referentes aos candidatos e, também, a seus respectivos genitores”.

Por fim,a instrução normativa MGI Nº 23, de 2023, diz que:

"Art. 21. A comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pela pessoa no certame.
§ 1º Serão consideradas as características fenotípicas da pessoa ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação.
§ 2º Não serão considerados, para os fins do caput, quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em certames federais, estaduais, distritais e municipais ou em processos seletivos de qualquer natureza.
§ 3º Não será admitida, em nenhuma hipótese, a prova baseada em ancestralidade."

Como funciona a comissão de heteroidentificação?

As bancas dos concursos formam uma comissão com cinco pessoas. É comum que os editais sejam mais específicos nesse caso e dêem preferência às bancas com pessoas de grupo etnico-raciais diferentes, para que representem da melhor forma “os olhos” da sociedade. Elas vão receber o candidato e avaliá-lo visualmente. 

“A instrução normativa que rege o processo de identificação não traz condições de raça para a comissão avaliadora, apenas vai indicar que devem ser pessoas com reputação ilibada, residentes no Brasil e que tenham participado de oficinas ou curso sobre a temática da promoção da Igualdade racial e do enfrentamento ao racismo”, acrescenta a advogada Maria Fernanda. Ela ainda lembra que essas pessoas devem ser, preferencialmente, experientes na temática da promoção da Igualdade racial e do enfrentamento ao racismo.

Procurado, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos diz que segue a Instrução Normativa MGI n° 23, “norma vigente que disciplina a aplicação da reserva de vagas para pessoas negras nos concursos públicos” e que o “procedimento de heteroidentificação não é inédito, já foi realizado em outros concursos e está previsto originalmente desde a Portaria Normativa MPDG n° 4/2018”.

A reportagem também procurou a Cesgranrio, banca organizadora do Enem dos Concursos, para saber como a comissão de heteroidentificação será formada e aguarda retorno.

Veja, na íntegra, a nota do ministério

O procedimento de heteroidentificação não é inédito, já foi realizado em outros concursos e está previsto originalmente desde a Portaria Normativa MPDG n° 4/2018. A Instrução Normativa MGI n° 23, que é a norma vigente que disciplina a aplicação da reserva de vagas para pessoas negras nos concursos públicos, incorporou o procedimento de heteroidentificação previsto na portaria de 2018.

Os candidatos que desejam concorrer às vagas reservadas a pessoas negras devem passar pelo procedimento de heteroidentificação, descrito no item 3.4 e subitens dos editais. O procedimento é realizado após as provas objetivas e a aprovação na prova discursiva.

Os candidatos às vagas reservadas passarão pela Comissão de Heteroidentificação, que utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato, isto é, a aparência externa da pessoa.

Para assegurar princípios constitucionais, a lisura do CPNU e o que determina a Lei n° 12.990/2014 – que reserva 20% das vagas de concursos públicos para negros – não serão aceitos registros, declarações ou documentos, seja do próprio candidato ou de sua ancestralidade, como aptos a comprovar o direito à cota.

 

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