“Todas as pessoas de Belo Horizonte têm uma relação ancestral com a serra do Curral. Ela é como um abraço, uma proteção, é o que faz a gente se sentir acolhido aqui. É ela (serra) que mostra, todos os dias, de onde viemos, quem somos e para onde vamos”. A frase é da Makota Cassia Kidoialê, líder do quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, que, em 2023, impediu na Justiça Federal a continuação de um mega empreendimento que obteve licença para minerar no cartão postal da capital mineira. Quando Cassia fala sobre a serra, ecoa milhares de vozes belo-horizontinas que mantêm uma conexão com a paisagem do Espinhaço de geração em geração, há 127 anos, completados no aniversário da cidade nesta quinta-feira (12 de dezembro). BH foi eleita o 2º município mais “verde” do Brasil – entre aqueles com mais de 500 mil habitantes –, segundo o Ranking Connected Smart Cities (CSC), e a Serra do Curral faz parte desta conquista. 

A comunidade tradicional - que é matriarcal desde o seu surgimento -, utiliza a serra para fins de sustento e religiosos e, apesar disso, não foi consultada no processo que concedeu a licença para a exploração mineral no monumento natural que não está presente apenas no horizonte da cidade, mas, também, em sua bandeira oficial.

“O nosso modo de vida é todo relacionado à mata da Baleia e à serra do Curral. A comunidade começa a partir dos elementos de lá. As madeiras, frutas, remédios, ervas, argila, água, eram colhidos nesta região. Quando a gente (quilombo) se instalou, não tinha saneamento básico, então a serra era o lugar de manejo e de sobrevivência da nossa comunidade. Também extraímos de lá elementos instrumentais para a manutenção da nossa tradição cultural, como o berimbau, a cabaça, tudo é colhido ali, na mata da Baleia”, detalha a Makota.

A história do quilombo remonta a 1892 - quatro anos após a abolição da escravidão -, quando a bisavó de Cassia nasceu em Ouro Preto, na região Central de Minas. De lá, a família migrou para o Morro da Queimada, também na cidade histórica, e, na década de 1950, para a capital mineira. Mas foi em 1970 que eles chegaram até a serra do Curral, após a mãe da Makota, Mam’etu Muiandê, hoje com 78 anos, receber a orientação para adquirir o terreno e criar ali, ao pé da serra, o Terreiro de Umbanda Senzala de Pai Benedito.

Mam’etu Muiandê, 78, no Terreiro de Umbanda Senzala de Pai Benedito I Flávio Tavares / O Tempo

Makota Cassia conta que a relação do quilombo com o território é tão forte que, ao saberem da autorização para mineração, eles se sentiram “invadidos”. “É como se entrasse na nossa casa, no nosso território, e resolvessem atuar ali sem dialogar com a gente. Apesar do nosso endereço estar com CEP, nós (quilombolas) estamos na mata, nós somos povos da natureza. A gente chama (a serra) até de quintal de casa. É onde nós gostamos de se reunir e brincar. Hoje eu sou avó, e levo meus netos para brincar no mesmo  lugar, contando história da nossa comunidade. Entendo que toda a serra do Curral é um território quilombola, até porque, ela abrigou a maior parte da população preta, que até hoje depende desse território”, conclui.

Corredor Ecológico do Espinhaço

Foi durante essa “disputa” em defesa da serra do Curral que o município de Belo Horizonte criou, por meio de um decreto, o Corredor Ecológico do Espinhaço, nome da cordilheira que se inicia na capital mineira e vai até a Chapada Diamantina, na Bahia. Com uma área de 1.1 mil hectares de território, a unidade de conservação vai desde a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Minas Tênis Clube, no bairro Taquaril, até a Mineração Lagoa Seca, no Belvedere, cortando a cidade de Leste a Oeste e passando por três parques municipais, pela mata da Baleia e pelo Parque Estadual da Baleia.

“O reconhecimento da área como um Corredor Ecológico constitui-se, portanto, num importante instrumento legal não só para embasar as políticas públicas para conservação desse inestimável patrimônio natural e cultural, como também contribuir para o incentivo da pesquisa científica em temas como, biodiversidade, recursos hídricos, restauração florestal, socioeconômica”, argumentou  a PBH à época do decreto.

A bióloga Fernanda Raggi destaca que a proteção da serra do Curral é importante não somente por se tratar de um marco geográfico e cultural da cidade - já que seu nome remonta às origens do antigo Curral Del Rey, mas, também, por conta de sua biodiversidade. “A gente tem um ecossistema próprio, porque a serra é uma transição entre a Mata Atlântica e o Cerrado. E isso é extremamente importante, por se tratar de um ambiente frágil, com espécies tanto de fauna quanto de flora que são endêmicas, ou seja, só existem ali”, defende.