Quando Ismael Nonato, de 28 anos, comprou uma bicicleta em plena pandemia, seu objetivo era mudar de vida. Em pouco tempo, o hobby não só o ajudou a vencer o sedentarismo e a depressão, como também o tornou um ciclista de competição. Para evoluir no esporte, no entanto, o agente de segurança enfrenta desafios fora do seu controle: o trânsito caótico, o asfalto marcado por desníveis, bueiros soltos e falhas, e uma série de obras no caminho. Ismael pedala na orla da lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, onde placas amarelas sinalizam: “faixas compartilhadas: ciclistas treinando”. Isso, enquanto ele luta para não desistir da prática, como já fizeram muitos colegas. “Tem se tornado inviável. É perigoso. Estamos a 30, 40 km/h. Qualquer desvio de atenção, atrito com um motorista ou desnível repentino no asfalto pode causar um acidente grave”, diz.
A percepção do ciclista não está errada. Dados do Observatório da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp) apontam a avenida Otacílio Negrão de Lima, na orla da Pampulha, como a líder em acidentes envolvendo bicicletas na capital. De 1º de janeiro de 2014 até 4 de dezembro deste ano, foram gerados 85 boletins de ocorrência de atropelamentos e batidas graves – considerando que a maioria das quedas não é notificada à polícia. São, pelo menos, nove feridos ao ano. Em segundo lugar está a avenida dos Andradas, com 69 acidentes com bicicletas na série histórica, e, depois, Cristiano Machado, com 48. Os números são, respectivamente, 19% e 44% menores. “É triste. Temos vários ciclistas que moram ao lado da lagoa e não pedalam nela. Vão para Nova Lima, Ouro Preto, e ganham campeonatos. São a maioria. Hoje, me sinto inseguro na orla e busco pedalar em pelotão (fila de bikes) nas madrugadas, quando o fluxo de carros é menor”, lamenta Ismael.
A reportagem de O TEMPO acompanhou um treino do atleta junto com o ultraciclista Rogério Pacheco, profissional em pedalar de centenas a milhares de quilômetros, na manhã de quinta-feira (5 de dezembro), na avenida Otacílio Negrão de Lima, na orla da Pampulha. Em um curto percurso de 1 km, do encontro com a avenida Ministro Guilhermino de Oliveira até a interseção com a rua Alameda das Latânias, a dupla enfrentou quatro entraves: desnível do asfalto pós-obras, bueiros e tampas de esgoto sobressalentes, embates com carros e motos, e afunilamento da pista devido à intervenção em andamento da Copasa. No primeiro cruzamento, onde uma obra da companhia foi finalizada recentemente, ficou um desnível desproporcional no asfalto. Já no último, tapumes estão bloqueando uma das vias, concentrando ciclistas e motoristas em uma pista estreita e veloz, já que é a descida após a barragem.
“Os órgãos não estão preocupados com os ciclistas, não se importam com os grupos que pedalam na lagoa. A pista está horrível, principalmente nos trechos de obras, os tapas buracos estão horríveis. Muitas bocas de lobo tem um tamanho exagerado, formam um degrau, o que é muito perigoso para as bikes. Após uma obra da Copasa próximo ao Museu da Pampulha, o trecho ficou uma vergonha. Como o asfalto está ruim, ou os atletas se lesionam ou as bicicletas quebram”, denuncia Pacheco.Ciclistas enfrentam entraves, como bueiros na pista, para pedalar I Alex de Jesus/O TEMPO
Desnível no asfalto. Foto: Alex de Jesus/O TEMPO
De um lado, obras
De fato, a Copasa está operando duas obras simultâneas na orla da Pampulha, uma na margem direita e outra na esquerda. Ambas visam à substituição de redes interceptoras de esgoto obsoletas, o que, de acordo com a companhia, “garantirá a eficiência nos processos de coleta, transporte e tratamento do esgoto da bacia”. As intervenções exigem um investimento de cerca de R$ 16 milhões, e o prazo de conclusão é previsto para o primeiro semestre de 2025. Quanto aos danos causados no asfalto, a Copasa assumiu a responsabilidade de revitalizar o pavimento após a entrega das obras.
Na avaliação do especialista em trânsito Silvestre Andrade, as intervenções na cidade sempre vão gerar transtornos, mas é preciso pensar em formas de amenizar os problemas, principalmente em áreas de grande movimentação, como a orla e a barragem da Pampulha. “A Otacílio Negrão de Lima é, até mesmo, estreita. A partir do momento em que os ciclistas vão para o asfalto, eles entram em uma zona de insegurança, porque o automóvel é mais veloz e mais pesado. Nessa disputa, as bicicletas sempre perdem. Quando há obra, é pior ainda, é um agravante”, diz. No trecho da intervenção com bloqueio de via e tapumes, os ciclistas estão preferindo reduzir a velocidade e usar a ciclovia, uma vez que a pista foi afunilada.
Sobre isso, a Copasa informou que “tem atuado em conformidade com as exigências dos projetos de trânsito estabelecidos pelos órgãos responsáveis”. A companhia acrescentou que os trechos em obras na orla da Pampulha estão sinalizados e que “trabalha para gerar o menor impacto possível” no trânsito. Segundo o especialista Andrade, esta pode ser uma oportunidade para considerar o recapeamento de todo o pavimento em volta da lagoa. “É importante que seja rotina verificar as condições do asfalto na orla, se está com trincas, buracos, e realizar o tratamento adequado. A Pampulha é patrimônio mundial, precisa manter sua qualidade”, analisa.
De outro, trânsito diverso
Segundo o relato do ultraciclista Rogério Pacheco, os problemas são limitantes para o esporte na Pampulha, Patrimônio Mundial da Humanidade, uma vez que as ciclovias também não são uma opção para a prática em velocidade. Elas têm limite de 20 km/h, muito abaixo do que é alcançado no ciclismo, e são compartilhadas entre famílias, crianças aprendendo, quadriciclos e corredores desinformados. ”Nós apoiamos a ideia de ciclovias, mas elas foram pensadas para um perfil turístico. Estreitas, a pessoa que pedala no sentido anti-horário, contrário ao pelotão (dezenas de atletas), se sente insegura. Uma pessoa que não tem conhecimento do pedal pode tomar uma decisão precipitada, e um choque frontal ou uma fuga rápida em direção ao asfalto são coisas sérias”, pondera ele, que é belo-horizontino e ciclista há 30 anos.
A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) confirmou que são duas as áreas para bikes na lagoa: os 18 km de ciclovia e os trechos de “ciclorotas”, com sinalização de compartilhamento do asfalto entre veículos e bicicletas. “A ciclovia está implantada no nível da calçada, oferecendo mais segurança e conforto para os ciclistas, e sua largura é compatível com ciclovias bidirecionais e com grande fluxo de usuários. A ciclovia possui também separação física da pista de caminhada por jardins e adequações geométricas. Na avenida Otacílio Negrão de Lima há ainda placas que sinalizam e alertam sobre a presença de ciclistas em treinamento e o compartilhamento da via entre carros e bicicletas”, informou.
O Executivo reforçou que, para a segurança da orla, há “redutores de velocidade, placas indicando a velocidade máxima permitida, rotatórias, paradas obrigatórias, proibições de estacionamento, faixas de pedestres e semáforos; todos devidamente sinalizados”. Mesmo assim, conforme a especialista em trânsito Roberta Torres, como a capital ainda não abraçou a cultura das bicicletas, pouco se sabe sobre o compartilhamento das vias, o que facilita a rixa entre os motoristas de veículos, os ciclistas de competição e os de lazer.
“No asfalto, os atletas estão corretos, estão em uma área que também é deles e, por isso, podem reivindicar o espaço e um pavimento melhor, assim como os motoristas. O problema ainda é uma sinalização muito modesta dessas ciclorotas. Tanto é que a maioria das pessoas não as conhece e vê os ciclistas como invasores. É preciso tornar isso mais visível, fazer uma sinalização robusta, na pista e no campo de visão”, analisa Roberta. Para redução de acidentes, a PBH pede que as regras de trânsito sejam respeitadas: “por ser um local com uma alta concentração de pedestres e ciclistas, sobretudo nos finais de semana, é fundamental respeitar os limites de velocidade e zelar pela segurança dos participantes mais frágeis no trânsito.”
Revitalização e novas ciclovias em BH
Orla da Pampulha: em 2022, foram concluídas as obras de reforma da ciclovia no trecho de 7,1 km de extensão, que fica entre a rua Garopas e o Clube Belo Horizonte. A reestruturação contou com a elevação da pista de bicicletas para o nível da calçada, ampliação da largura da ciclovia para 2,5 metros – compatível com ciclovias bidirecionais e com grande fluxo de ciclistas –, e a instalação de separação física da pista de caminhada por jardins e adequações geométricas. Um projeto de requalificação dos outros 11 km foi concluído e está em fase de captação de recursos.
Ciclovias em fase de implantação: avenidas Vilarinho e Via dos Minérios.
Ciclovia em requalificação e ampliação: rua Rio de Janeiro.
Ciclovia em revitalização: av. Andradas, entre Silviano Brandão e Itaituba.