Virar a noite usando drogas, jogando baralho e em meio a confusões era a rotina de Roberto Donizete, mais conhecido como Beto, na cadeia. Aliás, nas cadeias. Condenado a 25 anos de prisão por latrocínio (roubo seguido de morte) e assalto à mão armada, ele era transferido de presídio em presídio devido ao mau comportamento. Nessa quinta-feira (11 de julho), Beto esteve na sede do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em Belo Horizonte, mas longe do banco dos réus. Em vez disso, como representante de uma entidade que visa a ressocialização de presos e cuja metodologia, brasileira, tem sido exportada para outros países: a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac).
Hoje, o ex-presidiário é diretor de Disciplina, Metodologia e Segurança da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), responsável pelas 69 Apacs do país, onde cumprem pena quase 7 mil pessoas — lá, em vez de detentas, elas são chamadas de "recuperandas". No TJMG, Beto participou do simpósio "40 anos da Lei de Execuções Penais: A Execução Penal à luz do Método Apac" ao lado de autoridades.
A O TEMPO, o diretor lembrou do passado atrás das grades, de onde saiu em 2004, para mostrar que se reergueu após passar pela Apac, onde os recuperandos recebem um tratamento humanizado, com rotina de trabalho e estudo. Dos 25 anos de condenação, ele ficou 15 preso, sendo sete na Apac, mas confessa que, quando lá chegou, pensou em fugir, como já havia feito duas vezes em penitenciárias. "Mas tinha algo que não me deixava fugir: o tratamento, o respeito, a dignidade e as pessoas. Era outro ambiente, e isso foi me segurando."
Beto, que tinha até a quinta série, concluiu o ensino médio na Apac em meio a uma rotina que em nada se assemelha à vivida em presídios convencionais. "Às seis da manhã, eu tinha que acordar e já ia para as atividades: estudo, laborterapia, refeitório, limpeza. Durava o dia inteiro. A gente ia dormir às dez da noite. Era um dia a dia quase igual à de um trabalhador aqui fora, não tem ociosidade." O objetivo dele, agora, é se formar em direito.
Roberto Donizete, o Beto, ex-detento e hoje um dos diretores da FBAC (Foto: Laísa Maciel/FBAC)
Exemplos como os de Beto motivaram outros países a buscar a metodologia, que nasceu no Brasil, em 1972. A iniciativa começou em São José dos Campos, interior de São Paulo, idealizada pelo jornalista Mário Ottoboni e por um grupo de cristãos. Hoje, a Apac vive uma expansão internacional. Segundo a FBAC, já há unidades nos Camarões, Chile, Colômbia, Coreia do Sul, Costa Rica, Estados Unidos, Itália, México, Paraguai e Portugal, além de outras em processo de implementação na Argentina, Alemanha, Bolívia, Equador, Espanha, Guatemala, Peru, Quênia, República Tcheca e Ruanda.
"Damos uma consultoria aos países, a assessoria metodológica e a técnica para a criação de Apacs. Dispomos de materiais, inclusive manuais de aplicabilidade do método para a América Latina. Na grande maioria dos casos, os países nos procuram para conhecer o trabalho. Dizemos que a Apac nasceu no Brasil, mas não é brasileira. É um serviço para a humanidade", afirma Denio Marx, gerente de relações internacionais da FBAC.
Preconceito é desafio
Para um dos pioneiros do método, Valdeci Antônio Ferreira, o maior entrave para a expansão das Apacs no Brasil é o desconhecimento. Uma ideia habitualmente difundida pelo senso comum é a de que, nessas unidades, os recuperandos têm regalias. "A Apac não é um hotel cinco estrelas, não é um spa. É um presídio onde damos chance de mudança de vida a pessoas que querem essa oportunidade. O trabalho e o estudo são obrigatórios, cada um lava a própria roupa e cuida da limpeza", pontua Ferreira, diretor do Centro Internacional de Estudos do Método Apac, destacando que os presídios convencionais são um problema para a recuperação dos detentos.
"O sistema prisional brasileiro caminha do caos para o colapso. Se não for feito algo de forma urgente, a sociedade pagará um preço altíssimo, porque ali as pessoas são tratadas como o lixo da sociedade, como a carne podre que não adianta mais salgar. E a sociedade teima em enxergar as prisões como espaços de vingança, e não de recuperação de vidas. Há um círculo vicioso do 'prende e solta' cada vez pior, em que a pessoa abandonada atrás das grades sai pior e, de novo, irá ferir a sociedade", avalia.
Futuro
Apesar das barreiras, a ampliação da metodologia está no horizonte da diretora-geral da FBAC, Tatiana Faria. A ideia da entidade é entrar em um projeto de âmbito nacional chamado Pena Justa, que visa enfrentar o cenário de violação de direitos nos presídios brasileiros. O plano tem sido elaborado, sob a coordenação da União e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). "Queremos que as Apacs aumentem a atuação no território nacional constando nesse plano, para que tenhamos a possibilidade de fazer parte de um programa federal", afirma.
Apac em Minas
Minas foi palco para a criação da segunda Apac do Brasil, erguida em 1986, em Itaúna, no Centro-Oeste do Estado. Hoje, 74% (50) das unidades estão em território mineiro, com 5.595 recuperandos. Além de Belo Horizonte, na região metropolitana a associação está em Betim, Nova Lima e Santa Luzia.