Imagine passar até 12 horas por dia em cima de uma moto, em busca de garantir o sustento de sua família, vivendo constantemente exposto aos riscos do trânsito e sem ter, ao menos, um local para usar o banheiro. Em Minas Gerais, essa dura realidade pode estar próxima do fim, com a possibilidade de os motoboys e entregadores de aplicativo ganharem uma Política Estadual de Proteção Social. Na manhã desta sexta-feira (11 de julho), será apresentado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) um Projeto de Lei (PL) que cria uma série de medidas para garantir um ambiente de trabalho digno, seguro e que preserve a saúde destes trabalhadores por aplicativo no Estado. 

Construído de forma coletiva com grupos e associações de motociclistas, a proposta será apresentada pela deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), que explica que a ideia é estabelecer "princípios, diretrizes e obrigações" que permitam a redução da alta dependência econômica do trabalho desenvolvido nas plataformas digitais, promovendo a prevenção de situações de risco e a democratização do acesso e uso dos espaços públicos. 

"Hoje a economia do Brasil se transformou com as novas tecnologias e os trabalhadores de aplicativo somam quase 1 milhão de pessoas subordinadas a um sistema de entrega que é definido pela plataforma de aplicativos, muitas vezes sem respeitar direitos básicos de dignidade do trabalho. É muito grande o número de acidentes e fatalidades no trânsito que têm acontecido com esses trabalhadores sem que eles tenham seguridade social. É muito difícil a situação daqueles que rodam por horas nas ruas sem um banheiro, um local para poder beber água, carregar o celular. Por esse motivo, nós construímos uma política estadual de apoio aos trabalhadores por aplicativo", detalhou a parlamentar. 

Entre as medidas da proposta está a criação de pontos de apoio em parceria com as plataformas em municípios com mais de 200 mil habitantes; e a construção da chamada "Faixa Azul", já implantada em São Paulo e que vem reduzindo o número de acidentes com a categoria.

Também serão pontos pleiteados pelo PL: 

  • Uma maior transparência nos termos de uso e da política remuneratória dos apps
  • Fomento à renovação das frotas 
  • Garantia de uma cobertura social e indenizatória em caso de impedimento ou redução da capacidade de trabalho 

Motoboy, um dos fundadores e secretário da Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores de Juiz de Fora (AMMEJUF), Nicolas Souza Santos, de 37 anos, participou da mobilização do chamado "Breque dos Apps", promovido este ano, e participou da construção da Política Estadual. Recém filiado ao PSOL, ele conta que foi a partir da luta da categoria na cidade da Zona da Mata que, hoje, os entregadores de lá contam com dois pontos de apoio estabelecidos por uma lei municipal. 

"A gente (entregadores) não percebe a necessidade até ter um ponto de apoio. Hoje, é impossível não ter, pois é muito utilizado. Temos geladeira, microondas, banheiros, carregadores de celular, internet. Muitos usam no fim do turno do almoço, após as 14h30, que é quando os motoboys vão almoçar. E aí, a marmita já está na geladeira, esquenta no microondas e deixa o telefone carregando enquanto come e descansa um pouco. Tem até chuveiro quente no banheiro. É o mínimo para termos alguma dignidade no dia-a-dia”, defende. 

Ainda segundo Nicolas, outra grande importância dos pontos de apoio é a promoção da socialização entre os trabalhadores. "Essa é uma categoria que fica muito isolada, rodando sozinho. Então ali, no ponto de apoio, a gente conhece o outro, pode conversar um pouco, e isso é muito importante. É totalmente diferente você estar em um espaço coberto, almoçando sentado, trocando uma ideia com a rapaziada. Você estava ali, na chuva ou debaixo de sol, comendo uma marmita que ficou fora da geladeira o dia todo, ou comendo coxinha, que é o que acontece e afeta a nossa saúde a longo prazo", garante. 

Após ser protocolado na ALMG, o PL será enviado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) antes de avançar para outras comissões. "A gente construiu o projeto com os entregadores. Então, desde o protocolo até a mobilização para a votação, a gente vai contar bastante com a pressão e a luta da categoria", concluiu a deputada Bella Gonçalves.

Foto mostra Nicolas durante debate na Assembleia de São Paulo l Crédito: ALESP/DIVULGAÇÃO

 

Política também trará benefícios para motogirls

Apesar dos homens serem a grande maioria dos entregadores por aplicativo, dados recentes indicam que a proporção de mulheres que atuam sobre duas rodas aumentou de 5% para 10% nos últimos anos, ainda conforme o secretário da AMMEJUF, Nicolas Souza Santos.

Embora exijam cargas pesadas que podem ultrapassar 12h por dia, as plataformas de entrega por aplicativo permitem uma certa flexibilização, o que pode explicar o aumento no número de mulheres que estão atuando no setor. "Em alguns momentos do dia, você pode desligar o aplicativo, né? Portanto, para mulheres que muitas vezes acumulam a tarefa de levar um filho para escola, dar almoço, janta, essa possibilidade de trabalho flexível acaba atraindo", pondera o motoboy. 

Jéssica Magalhães, de 34 anos, atua como entregadora de aplicativo e ajudou a criar, em 2022, o "Minas no Trecho", um coletivo de motogirls de Belo Horizonte que, hoje, já reúne mais de 150 motociclistas. Ela conta que, desde então, elas perceberam uma série de situações que afetam elas e que, por estarem em um ambiente majoritariamente masculino, muitas vezes não eram levantados como bandeiras da categoria. 

"Percebemos que tínhamos dificuldade com questões técnicas, mecânicas da moto. Diferentemente dos homens, a gente não cresceu habituado com esse ambiente motorizado. Depois, identificamos também que tínhamos problemas exclusivos de nós, motogirls, como infecções urinárias recorrentes, fruto de ficarmos segurando muito tempo para ir ao banheiro. Diferentemente dos motoboys, nós não podemos fazer as necessidades em um local isolado", apontou. 

Foi a partir de uma audiência pública que contou com a presença das entregadoras que o PL trará, entre suas propostas, a criação do chamado "Espaço Coruja". "Seria um espaço noturno para acolher os filhos das motogirls que trabalham à noite. Também foi proposto que existam banheiros adaptados para nós, mulheres, nos pontos de apoio que serão criados", defendeu Jéssica.

Grupo "Minas no Trecho" reúne mais de 150 motogirls de BH l Crédito: Acervo Minas no Trecho

Ainda segundo a motociclista, apesar da proposta do Plano Estadual de Proteção Social ser boa para os trabalhadores, outros pontos ainda precisam ser abordados. "Acho que o Estado tem que entrar mais, tem que fornecer formações gratuitas, isenções de taxas, como por exemplo da chamada EAR na CNH, para que parte dessas mulheres e homens possam sair da irregularidade. O estado precisa criar um caminho de entrada, pois, hoje, percebo que há um muro de exclusão para nós", concluiu a motogirl.

Procuradas pela reportagem de O TEMPO, algumas das principais plataformas de entrega por aplicativo, como iFood, Uber e 99, não se manifestaram sobre a proposta que será apresentada na ALMG.