O governo de Minas divulgou, nesta quarta-feira (28 de agosto), que destinará R$ 18 milhões para financiar estudos para a fase de testes em humanos da Calixcoca — vacina contra a dependência em cocaína e crack que é desenvolvida há anos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O anúncio ocorreu em meio a uma polêmica envolvendo a iniciativa, depois que a Justiça Federal determinou o bloqueio de R$ 2,6 milhões das contas de um dos pesquisadores à frente do projeto . 

O TEMPO teve acesso ao documento com mais de mil páginas do processo judicial, que culminou na determinação do bloqueio de bens em abril de 2025. Conforme a ação, movida por outros três pesquisadores e pela própria UFMG, o psiquiatra Frederico Duarte Garcia, coordenador da iniciativa, teria embolsado todo o prêmio Euro de Inovação na Saúde, que pagou 500 mil euros à iniciativa em outubro de 2023

A ação foi movida pelos pesquisadores Ângelo de Fátima, Gisele Assis Castro Goulart e Maila de Castro Lourenço das Neves, que alegam que o prêmio deveria ter sido dividido entre os inventores e parte revertida para a continuidade dos estudos da vacina, conforme acordo verbal que teria sido descumprido.

Apesar de o edital da premiação europeia não vincular o pagamento à aplicação na própria pesquisa, na proposta que foi apresentada por Frederico no concurso, e anexada ao processo, ele teria indicado detalhadamente que o valor seria revertido para o financiamento e continuidade da pesquisa, o que, segundo os colegas dele, não teria ocorrido. Uma das pesquisadoras, inclusive, apresentou prints que comprovam que ela teria preenchido pessoalmente a documentação e redigido o conteúdo da proposta enviada ao concurso, juntamente com o psiquiatra.

Durante a coletiva realizada nesta quarta-feira, o pró-reitor de Pesquisa da UFMG, Fernando Reis, foi questionado sobre a polêmica judicial envolvendo o pesquisador da instituição. Segundo ele, não seria possível comentar o caso por se tratar de um "litígio individual", que não estaria influenciando em nada "o trabalho da equipe que está no momento desenvolvendo a pesquisa". "Nesse momento temos dinheiro necessário para cobrir nosso plano de trabalho nos próximos anos", completou. 

O secretário de saúde de Minas Gerais, Fábio Baccheretti, chegou a afirmar que, em breve, a vacina poderá ser disponibilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Assim que aprovada pela Anvisa ela deve ser incorporada pelo governo de Minas e, sem dúvidas, pelo Ministério da Saúde ao SUS. Isso vai desafogar o sistema de saúde, tendo em vista que geralmente dependentes desenvolvem tuberculose e outras doenças devido a baixa imunidade, além da prematuridade de bebês que foram gerados por mães dependentes”, afirmou. 

A reportagem tentou contato com o pesquisador processado pelos colegas e pela faculdade, porém, até a publicação desta reportagem, ele não tinha se manifestado. 

UFMG pleiteou toda a quantia

Enquanto os pesquisadores defendem que parte da premiação deveria ser dividida entre eles e, o restante, destinado ao financiamento da vacina, chegando a propor que metade de suas respectivas partes também fossem destinadas ao fomento das pesquisas da UFMG, em nome da "liberalidade e ética".

Por outro lado, a instituição federal se posicionou no processo solicitando que todo o montante deveria ser revertido para a instituição. Conforme argumentado pela universidade, que, ao lado da FAPEMIG, é cotitular da patente da vacina Calixcoca, os valores deveriam ser revertidos para a continuidade da pesquisa. 

Também no processo, o professor Frederico Garcia sustentou que o Prêmio Euro é de cunho "exclusivamente cultural" e teria sido concedido em caráter pessoal e subjetivo a médicos, não à pesquisa ou à patente da instituição. Ele alega ser o único autor do projeto apresentado e, portanto, o "único destinatário legítimo da premiação", cabendo a ele decidir sobre a divisão dos valores.

Garcia argumentou ainda que a UFMG confunde patente com a iniciativa premiada e que a universidade sequer poderia ter se inscrito no concurso. Sobre o fato dos outros pesquisadores terem, inclusive, subido ao palco no dia da entrega do prêmio, o psiquiatra argumentou que o convite foi apenas um "gesto de gratidão, protocolar, simbólico, desprovido de qualquer força vinculante ou natureza contratual".

Vacina 'milagrosa' foi criticada por entidades

Apesar dos investimentos e da expectativa em torno da Calixcoca, a vacina tem sido alvo de críticas feitas por diversas entidades e movimentos sociais. Em uma carta aberta assinada em setembro de 2023, dezenas de organizações questionam a abordagem do projeto, afirmando que a solução "apenas biológica" ignora o contexto social do proibicionismo, que afeta a vida diversas pessoas, especialmente negras, pobre e periféricas. "A vacina Calixcoca acaba por reafirmar a lógica de uma cura milagrosa para um problema extremamente complexo", pontuaram as entidades.

Na carta, elas também expressaram sua preocupação com um possível "uso involuntário de ferramentas como a vacina", questionando a qual público ela será destinada, quais os condicionantes de uso e se os fatores psicossociais são levados em consideração.

"Outro ponto essencial é a conhecida adaptabilidade do mercado das drogas ilícitas. Usuários de crack que se submeterem ao tratamento com a vacina, caso ela se mostre eficaz, podem não deixar de sentir o desejo de usar, ainda que não sintam os efeitos esperados, o que pode fazer com que migrem para outras substâncias estimulantes ou aumentem a dose de uso para atingir o efeito antes conseguido. Esse problema não é desprezível, pois pode gerar o aumento da ocorrência de overdoses e o deslocamento do consumo para outros estimulantes não abrangidos pela ação da vacina", argumentam. 

"Não existe mundo sem drogas e não haverá vacina alguma que impeça o uso de drogas em nossa sociedade", concluem as instituições na carta aberta.

Investimentos milionários

A vacina Calixcoca tem atraído vultosos investimentos para seu desenvolvimento. O Governo de Minas Gerais anunciou um aporte de R$ 18,8 milhões para os testes que podem levar aos estudos em humanos. Deste total, R$ 10 milhões são provenientes da Secretaria de Estado da Saúde (SES-MG) e R$ 8,8 milhões da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (Sede-MG), por meio da Fapemig.

Para 2024, R$ 14,6 milhões já foram repassados, e mais R$ 1,69 milhão será pago em 2025. O restante do valor – R$ 2,6 milhões – será repassado entre 2026 e 2027. Além disso, a Fapemig já investiu outros R$ 500 mil para a pesquisa por meio de chamadas públicas.

O financiamento do projeto também conta com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), apoio da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas, do Ministério da Justiça, e verbas de emendas parlamentares.