Belo Horizonte tinha, no ano passado, uma população de cerca de 48 mil cães e gatos de rua, de acordo com os dados mais atualizados da Prefeitura da capital. Por mais que o poder público e amantes dos bichos os recolham constantemente, os números nunca ‘zeram’, pelo contrário: resgatadores de animais contam que frequentemente são chamados para salvar os bichinhos abandonados, além de se depararem com filhotes despejados em suas portas várias vezes ao ano. Para especialistas, as consequências negativas são várias: além das óbvias para o bem-estar, proteção e para a vida dos animais, trata-se de uma questão de saúde pública, já que bichos sem cuidados nas ruas podem resultar na transmissão de doenças.
A médica veterinária Juliana Masiero afirma que o problema de abandono de animais, infelizmente, sempre existiu, mas foi agravado com a pandemia da Covid-19. Como muitas pessoas estavam se sentindo sozinhas por conta das medidas de distanciamento social, elas resolveram adotar um bichinho para ter companhia. Porém, assim que a vida voltou ao normal, muitas dessas pessoas resolveram deixar na rua quem deu afeto a elas e as livrou da solidão. “Vários animais acabaram ajudando os seres humanos, mas muitos foram abandonados”, diz ela.
Ativista da causa animal, Franklin Oliveira, de 54 anos, já resgatou diversos bichos em tristes condições e que, inclusive, corriam risco de perder a vida. Aos cuidados dele estão mais de 60 cachorros e gatos, que consomem diariamente 17 quilos de ração. Ele, que tem a ajuda de amigos e parceiros para tratar os animais, acredita que o quadro de abandono que se vê atualmente pode ser resumido em poucas palavras: falta de responsabilidade e de amor. Além disso, lembra Oliveira, trata-se de uma crime. A Lei Sansão, de autoria do deputado federal Fred Costa (Patriota), sancionada em 2020, aumentou a pena para maus-tratos aos animais. O crime passou a ser punido com reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição de guarda. Antes, a pena era de três meses a um ano de detenção e multa.
“O amor que tenho pelos animais veio da minha mãe e do meu pai. Comecei a trabalhar em 1980 como voluntário em um abrigo e, desde então, cuido dos animais. Não é fácil: faço mutirão de banho, mutirão de passeio… O que eu digo para as pessoas é que quem puder, ajude os bichos. Não fique só olhando”, diz.
Para ajudar o trabalho de Franklin Oliveira, é possível enviar ração de cães e gatos para a banca de revistas dele na Avenida Brasil, 460, em frente ao Teatro da Maçonaria, em Belo Horizonte. Doações também podem ser feitas pelo Pix 31 99676-0099.
Defesa de todas as formas de vida
Autor da Lei Sansão, o deputado Fred Costa defende também que devem ser aplicadas ações imediatas de castração e adoção de animais em grande escala. Para ele, o quadro de abandono que se tem atualmente é o retrato da ausência de políticas públicas ao longo dos anos.
“As ações têm que ser em grande volume. Não adianta um pequeno volume. É como enxugar gelo”, diz ele. “Coincidentemente, pela primeira vez nos últimos anos, temos sido procurados pela Prefeitura para trabalharmos juntos essas ações”, relata.
Conforme o deputado destaca, as medidas em favor dos animais independem de conotação político-partidária. Para ele, é uma questão de defesa de todas as formas de vida.
“Nossa intenção é desenvolver ações continuadas, responsáveis, baseadas em dados para estabelecer não só um planejamento, mas para mensurar se estão tendo a eficácia esperada”, diz.
Questão de saúde pública
A médica veterinária Juliana Masiero lembra que a falta de cuidado com os animais resulta também em doenças para os seres humanos. Um exemplo dado por ela é a leishmaniose, transmitida quando insetos picam animais contaminados e, posteriormente, os seres humanos. Todos — bicho e gente — sofrem com isso. Outro exemplo são os carrapatos, que podem transmitir febre maculosa. Diante desse cenário, é essencial que os bichos fiquem dentro de casa, amparados e assistidos por profissionais, de acordo com ela.
“Se o animal é vacinado, se ele recebe os cuidados sob orientação do médico veterinário, a incidência de doenças diminui consideravelmente”, diz Juliana. “Também é importante que haja mais conhecimento em relação à castração, acerca da importância de manter os animais em casa, sem ‘dar voltinhas’. Às vezes a pessoa solta o animal na rua e depois se depara com uma fêmea grávida, tendo filhotes, e muitos ainda são abandonados”, afirma ela.
A procriação dos animais e, consequentemente, a multiplicação do abandono também é destacada pela veterinária Núbia Silva. Conforme lembra ela, encontrar um lar para os bichos é uma maneira de evitar diversos nascimentos de filhotes que também poderão sofrer bastante nas ruas.
“Quando a gente retira os animais da rua, a gente também diminui a procriação. Uma cadela tem, em média, cinco filhotes duas vezes ao ano. Uma gata tem em média 15 filhotes por ano. Imagina a proporção! É descomunal”, afirma.
Luta por auxílio
Muitas pessoas tentam ajudar os animais, mas acabam se deparando com uma série de desafios ao longo do caminho. Estudante de medicina veterinária, Tainá Castro, de 28 anos, cuida de mais de 80 cães e gatos em um imóvel no bairro Betânia, na região Oeste de Belo Horizonte, mas pode ter que deixar o local a qualquer momento. Ela conta que adquiriu o espaço, mas depois descobriu que a pessoa que fez a venda não tinha a posse do terreno. Após o fechamento do negócio, o vendedor desapareceu, deixando-a em dificuldades. Uma ação judicial determina que ela deixe o terreno com os animais ou pague multa diária.
“A gente não tem para onde ir. Não tem lugar para abrigar essa quantidade de cães e gatos. Não os tiramos das ruas para voltar com todo mundo para rua de novo. Todos eles são castrados, vacinados, vermifugados. Procuramos uma boa adoção para eles. A gente faz eventos de adoção duas vezes por mês”, conta Tainá.
A estudante de veterinária diz que tem responsabilidade por cada um dos animais e quer que eles encontrem uma boa família, que não irá abandoná-los novamente. Enquanto isso, faz todo um trabalho que demanda muito, tanto fisicamente quanto psicologicamente. “O trabalho é muito cansativo. A gente passa o dia inteiro limpando. Sem falar no psicológico porque a gente pega cachorro queimado, esfaqueado, abusado. Eles têm um trauma que a gente precisa tratar”, afirma.
Tainá busca ajuda para que possa arrecadar um valor para comprar outro espaço. Além disso, aceita todo tipo de doação, como cama para os animais e ração. Para isso, basta entrar em contato pelo Instagram @resgatocao.
A protetora Isabela Freitas também luta para cuidar dos animais. Atualmente, no abrigo que ela mantém em Esmeraldas, na região metropolitana de Belo Horizonte, há 150 cachorros, 30 gatos, cinco cavalos, entre outros bichos. De acordo com ela, as adoções vêm diminuindo ao longo do tempo. Além disso, a maioria das pessoas quer um animal de raça, segundo ela.
“Havia uma proporção razoável de adoções antigamente, que não estamos tendo no período pós-pandemia, não sei se por questões econômicas. O famoso vira-lata caramelo sempre foi mais rejeitado, assim como os especiais: cegos, amputados, idosos. Muitas pessoas só querem animais de raça”, diz ela.
Isabela recolhe animais na capital mineira e em cidades vizinhas. Para eliminar o problema do abandono, ela propõe mudanças como a identificação dos cães. “Os bichos tinham que ser chipados. Assim, se forem abandonados, dá para identificar o tutor”, afirma. Além disso, ela defende uma maior atuação do poder público junto aos protetores. Para ajudar o abrigo mantido por Isabela Freitas, basta entrar em contato pelo Instagram @isabelafreitas_protetora.
Causas do abandono
De acordo com informações da Polícia Civil de Minas Gerais, são vários os motivos que levam ao abandono de animais. Alguns dos principais são os latidos excessivos dos cães, alteração na disponibilidade de espaço (como em caso de mudança de casa), e a diferença entre a expectativa de se ter um animal e a realidade em relação aos cuidados necessários.
Para que o abandono de animais seja considerado crime, segundo a Polícia Civil, deve-se considerar se a pessoa agiu com consciência e vontade de praticar maus-tratos ou se aceitou o risco do resultado.
“Sendo hipótese de abandono doloso, em que o indivíduo age com consciência e vontade de praticar maus-tratos ou assume o risco do resultado, será instaurado um procedimento investigativo pela PCMG. E, como toda investigação, a equipe de policiais irá procurar evidências que possam levar à autoria delitiva, como fotos, vídeos, testemunhas, dentre outras medidas investigativas capazes de indicar o autor do abandono”, afirma.
Caso presencie um abandono, é importante registrar o fato em uma delegacia e, se possível, encaminhar vídeos, fotos e nomes de outras testemunhas. A situação também pode ser levada às autoridades pelo canal Disque Denúncia – 181.
Recolhimento
A Prefeitura de Belo Horizonte afirma que todos os animais recolhidos das ruas que chegam ao Centro de Controle de Zoonoses passam por uma consulta com veterinário e, caso seja preciso, recebem tratamento. Os animais também são vacinados e vermifugados. O executivo municipal também afirma que recolheu, no ano passado, 936 cachorros e 644 gatos que estavam nas ruas.
Os cães e gatos ficam por dois dias à espera dos tutores, caso os tenham. Quando acaba o prazo, eles são disponibilizados para adoção. Os animais adotados com idade superior a quatro meses já saem microchipados e castrados. Já aqueles que têm menos de 4 meses saem com a castração garantida.
O pedido para recolhimento de animais, segundo a Prefeitura de Belo Horizonte, pode ser feito pelos telefones (31) 98447-2941, 98372-1785, 98449-2165, 3277-7411/ 7413 e pelo e-mail: cczsmsa@pbh.gov.br