Às sete horas da manhã de domingo (18), Eliana não lembrava-se de ter pregado os olhos durante a noite. A insônia e o choro repetido são frutos de algumas imagens que ela recebeu da filha na noite de sábado (17) e que mostraram a ela um evento ocorrido no Templo Cervejeiro da Backer no bairro Olhos D’Água, na região do Barreiro em Belo Horizonte, e que marcou o relançamento da cerveja Capitão Senra com novo rótulo – o primeiro após ser constatado que a cervejaria foi responsável pela intoxicação por dietilenoglicol que decorreu no adoecimento de 21 pessoas e na morte de, pelo menos, outras nove.

O marido de Eliana Reis, José Osvaldo Faria morreu em 15 de julho aos 66 anos após mais de 500 dias internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de Belo Horizonte com diagnóstico de intoxicação pela substância encontrada na cerveja Belorizontina, por ele ingerida durante uma comemoração em fevereiro de 2019.

Imagens que circularam nas redes sociais entre a tarde de sábado (17) e esta manhã de domingo (18) detalham como foi o relançamento da bebida com rótulo remodelado. Frente às fotografias que retratam um momento de celebração na cervejaria, Eliana e outras famílias que perderam entes queridos ou que convivem com o drama do adoecimento após ingestão da Belorizontina sentem-se desrespeitados.

“As imagens que tenho na cabeça são do meu marido desmanchando. Ele urrava de dor em seus últimos dias de vida, mas não saía o som da voz dele. Agora a Backer dá uma festa? Gratuita? Eles não tiveram a decência de dar os pêsames, e agora comemoram? Comemorar o quê? O assassinato? E as doenças de não sei quantos outros que foram envenenados? Cadê a empatia deles?”, relata ela. Questionada por e-mail, a Cervejaria Backer não esclareceu quais as circunstâncias do evento ocorrido nesse sábado (17) e nem detalhou se realmente foi gratuito e apenas para convidados conforme informação que chegou à reportagem – procurada por telefone, a empresa não atendeu as ligações.

É entre soluço e lágrimas que Eliana relembra o drama vivido pelo marido e indaga ausência de assistência por parte da Backer às vítimas. “Ainda que eles (a Backer) não estejam nem aí para nada, nem para a Justiça, nem para promotores, mesmo assim eles deveriam ter respeito. É o mínimo. Eles não nos deram assistência, nem os pêsames, pelo menos respeito deveriam ter. Agora estão lá arrebanhando fãs em cima da desgraça. É muita dor. Vi meu marido sofrer mais de 500 dias, vi feridas enormes com três dedos de profundidade nas costas dele. E aí? Vamos brindar isso? Brindar o quê?”.

O susto frente à descoberta do relançamento da cerveja interrompeu o sábado de Eliana. Ela detalha que recebeu de conhecidos que também são vítimas da intoxicação decorrente da cerveja Belorizontina informações referentes à festa e, minutos depois, a filha começou a procurar por imagens que pudessem ter sido fotografadas na festa. “A gente não queria acreditar quando nos falaram, porque seria zombar demais da dor da gente, seria comemorar os nossos mortos, brindar a cada um que foi envenenado. Eu liguei para minha filha e pedi: ‘filha, olha aí o que está acontecendo’. Ela começou a procurar e foi encontrando fotos, materiais nas redes sociais. Ontem ela até postou no Instagram uma foto dela abraçada com o pai depois de ver a festa na Backer. A maior dor dela é o pai não poder participar da vida dela, curtir o neto. Ela colocou no Instagram: ‘mataram meu pai. Agora reabriu’”.

As imagens mostram frequentadores da festa ingerindo cerveja – sem retorno da Backer não é possível confirmar se a bebida servida realmente era Capitão Senra. Entretanto, uma das imagens publicadas nas redes sociais contém na legenda a garantia de que servia-se a bebida específica na festa. “Uma das fotos que eu recebi tem legenda falando: ‘que saudade que eu estava de tomar a Capitão’. São vários posts falando que eles estavam servindo Capitão Senra”, reforça Eliana que também viu as publicações.

Histórico

Cerca de um mês antes da morte do marido, Eliana pediu ajuda através de campanha online para pagamento do tratamento do marido estimado em R$ 8.900 por mês. Isto, pois, após cerca de 500 dias internado em um leito de UTI, José Osvaldo Faria pôde ser transferida para um quarto onde lhe era necessária assistência médica em todas as horas do dia. O plano de saúde, entretanto, não cobria o gasto com enfermeiro em período integral e a família viu-se obrigada a pagar o valor. Entretanto, os recursos já eram escassos após mais de um ano e meio de tratamento.

À época, a Backer declarou que não prestou ajuda à família para pagamento do tratamento de José porque eles não teriam apresentado os laudos médicos à Justiça para angariar o auxílio. Entretanto, também quando da campanha online, o advogado Guilherme Leroy que representa as famílias das vítimas na ação contra a Backer declarou que Eliana apresentou, sim, os laudos com gastos em uma reunião direta com a Backer ocorrida entre os meses de fevereiro e março deste ano.

Inquérito

Onze pessoas ligadas à Cervejaria Backer, entre funcionários e sócios, foram indiciadas em um inquérito da Polícia Civil cuja primeira etapa pôde ser concluída no mês de junho. Investigação que completou sete meses em agosto indica que erro grosseiro nos tranques da fábrica usados para produção de cerveja. Perícia, aliás, aponta que funcionário sem qualificação adequada era responsável por repor a substância tóxica. Em cada produto contaminado por vazamento no tanque havia, pelo menos, seis milímetros de dietilenoglicol, mais que o dobro da quantidade fatal.