As advogadas Darciana Paschoalino, de 42 anos, e Emiliane Tavares, de 40, têm vivido dias de terror na cidade de Ubá, na Zona da Mata mineira. Elas, que são namoradas, chegaram da Europa no último dia 6 e, desde então, vêm sofrendo verdadeiro linchamento virtual em grupos de WhatsApp e na internet, acusadas pela população local de terem espalhado o coronavírus na cidade.
Como se não bastasse a acusação falsa, já que a cidade não tem nenhum caso confirmado, as duas têm sido vítimas também de violentos ataques homofóbicos, conforme áudios e prints de páginas na internet.
Foi apenas na tarde de quinta-feira (19) que o resultado do exame saiu. Darciana e Emiliane receberam o diagnóstico negativo para a Covid-19. Mas a população local já havia julgado e condenado as duas pelas redes sociais:
“Gente, tudo é verdade, as duas estão infectadas e espalharam de propósito. Por conta da irresponsabilidade do que elas fizeram, a partir desta semana, vai ter um surto horrível na cidade e vai começar na região. Vai morrer muita gente”, diz uma mulher em um desses áudios.
“Estou numa revolta que só Deus sabe. Os casos estão só subindo. O negócio é ficar dentro de casa. Ela foi numa festa com mais de 500 pessoas, e a quantidade de gente que tá com sintomas… Essa mulher tinha que ser detida. Ela conseguiu trazer o coronavírus para dentro de Ubá. Pessoa ordinária”, diz outra mulher.
“O pessoal de Tocantins e de Ubá está organizado para pegar os sapatão. Até o grupo do presídio está querendo saber aonde que o sapatão mora. Escuta o que eu estou falando, o povo vai linchar os sapatão. Se você conhece alguém que conhece elas, fala com elas para vazar”, afirma um homem, também em um áudio de WhatsApp.
Outro homem diz: “Pode repassar esse áudio que eu te enviei, falando dessa sapatão. Essa porcaria. Por isso que eu não gosto dessa raça, eu tenho nojo. Viado e sapatão. Vai pro quinto dos inferno”.
Darciana conta que elas desembarcaram em São Paulo, vindas da Espanha, no sábado, dia 6 de março. No aeroporto de Congonhas, em São Paulo, e na conexão no Santos Dumont, no Rio, não houve nenhum cuidado ou orientação sobre o coronavírus, diz a advogada.
Sem apresentarem qualquer sintoma, na terça-feira, dia 10, as duas procuraram o Hospital Santa Isabel com objetivo de fazer o exame, já que o irmão de Emiliane, que mora em Barcelona, havia testado positivo para o vírus alguns dias após a partida delas.
“No hospital me disseram que não havia como fazer o teste, pois não havia kit disponível, e, como estávamos sem sintomas, deveríamos voltar para casa e levar nossa vida tranquilamente”, relata Darciana, que também é proprietária de uma autoescola.
A partir daí, a informação de que duas mulheres estariam contaminadas com o coronavírus tomou conta da cidade, e os ataques começaram. Tanto Darciana quanto Emiliane negam ter ido a uma formatura e dizem que resolveram ficar em casa por conta própria. Na quinta-feira, dia 12, quando a pandemia já havia sido declarada pela Organização Mundial da Saúde, resolveram tentar novamente fazer o exame em laboratorios privados. E nada. No domingo passado elas conseguiram, enfim, fazer o teste pelo SUS, por meio da Secretaria de Saúde do município.
Darciana conta que já identificaram quatro pessoas responsáveis por parte dos ataques e que vão processá-las. “A internet não é mundo de cego, como as pessoas acham que é e saem disseminando informações falsas escondidas atrás de um aparelho virtual”.
E desabafa: “Nós sofremos demais. Você não imaginam o quanto. Ameaça de morte, de boicote à minha autoescola, de apedrejamento da nossa casa, tudo o que você puder pensar. Não conseguimos dormir uma única noite”, desabafou Darciana, que diz ter ficado apavorada.
Mesmo após o resultado ter sido divulgado, as ameaças não cessaram. “Vai abraçar o capeta, vai viver com ele no inferno”. Por outro lado, pedidos de desculpas começaram a chegar até as duas, o que tem ajudado a amenizar todo o sofrimento.
Na manhã de quinta-feira, agentes da Secretaria Municipal de Epidemiologia foram até a casa delas com o resultado negativo. Com a boa notícia em mãos, Emiliane desabafou: “É uma sensação de muito alívio, poder demonstrar que somos pessoas do bem e que não tínhamos intenção alguma de propagar nada”. E acrescenta: “Eu tenho certeza que tudo isso teve como base a homofobia, pelo fato de sermos lésbicas. Ubá é muito complicada”, diz ela. Darciana concorda: “O que levou a população a se revoltar de forma abominável e criminosa é o fato de a gente ser lésbica. Não somos as únicas que fizemos o teste para o Covid. Existem outras pessoas, mas elas não foram relevantes para a sociedade ubaense”.
Até três anos de prisão
A advogada criminalista Alana Mendes, do escritório Henrique Abi-Ackel, explica que os autores dos ataques podem responder por três tipos de crime e estão sujeitos a pena de até três anos de detenção e multas.
“Como elas já fizeram o teste e comprovaram que não estão com o coronavírus, os agressores podem responder por calúnia. O artigo 138 do Código Penal prevê detenção de seis meses a dois anos”, explica Alana.
Segundo a advogada, mesmo se ficasse comprovado que as duas tivessem contraído a doença, as pessoas não teriam o direito de ameaçá-las. “Existe previsão penal para quem age de maneira irresponsável contra a saúde, mas quem pode responsabilizar os culpados é a Justiça, e não as pessoas”, destaca,
De acordo com a criminalista, os agressores ainda podem responder por crime de ameaça à vida, previsto no artigo 147 do Código Penal, com pena de um a seis meses de detenção ou multa.
Alana ressalta que os agressores também podem ser incriminados por cometer racismo. “Hoje não existe lei contra homofobia, por isso o Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendido que se trata de uma discriminação. Uma das bases é a Constituição Federal, que no artigo 3º, inciso IV, fala que o Estado precisa ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, ressalta a criminalista. Para esse caso, a pena é a mesma do racismo, de um a três anos de prisão. (com Queila Ariadne)
Ouça os áudios das ameaças: