Dia de Nossa Senhora Aparecida

De cor e nome iguais aos da padroeira, Aparecidas são vítimas do racismo em MG

Mulheres de nome e cor iguais aos da padroeira do Brasil denunciam ser vítimas do racismo em Minas Gerais; foram pelo menos 174 casos registrados entre janeiro e agosto deste ano

Por Rayllan Oliveira
Publicado em 12 de outubro de 2022 | 03:00
 
 
 
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"De cor igual à cor de tantas raças". O verso da canção em devoção a Nossa Senhora Aparecida é também a profissão de fé de tantas mulheres. Devotas que se identificam pela cor da pele e por carregarem o nome da padroeira do Brasil. Aparecidas que, mesmo diante de toda semelhança com a santa, não deixam de ser vítimas de um crime recorrente e contra a honra: o racismo. "Como é que as pessoas conseguem ver uma santa negra, mas o irmão que é negro e está ao lado não merece atenção? Será que não chegou ao coração delas de que o fato de aparecer uma santa de pele preta não é um sinal de que é necessário acolher todo mundo?", questiona a microempreendedora Cleuza Aparecida da Silva, de 45 anos, que recebeu o segundo nome em homenagem à padroeira por causa da devoção dos pais.

Assim como Cleuza Aparecida, outras tantas mulheres são vítimas do racismo em Minas Gerais. Somente neste ano, no período entre janeiro e agosto, pelo menos 174 se tornaram alvo de atitudes preconceituosas por causa da cor da pele. Elas representam 55% dos 316 casos registrados no Estado. O levantamento do Observatório de Segurança Pública, da Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp), aponta ainda um aumento de 35% do crime entre mulheres em comparação ao mesmo período do ano passado.

Violência como a que ocorreu com a jornalista Raquel Aparecida Santiago Mendes, de 43 anos. "Eu estava na aula e um colega virou para a figura de um livro e falou: esse é você, esse macaco. Eu não entendi, eu tinha 11 anos, mas aquilo doeu", relembra. Raquel, também registrada com "Aparecida" por causa de uma promessa feita por sua mãe diante das complicações durante o trabalho de parto, conta que a humilhação vivenciada na escola só foi amenizada depois que ela chegou em casa. "Eu perguntei: 'eu sou um macaco?'. Minha mãe, com muito amor, respondeu que eu sou a pessoa mais linda do mundo. E que eu não sou um macaco", relembra emocionada.

Para Raquel, o problema vivenciado lá na infância se perpetua nos dias atuais. Segundo a jornalista, o racismo é uma característica da sociedade brasileira e está inserido em nossa cultura, o chamado racismo estrutural. "Fui almoçar em um lugar de alta gastronomia e quem me serviu foram pessoas pretas. Eu estava naquele lugar sendo servida por pretos e não tinha outros clientes iguais a mim comendo naquele lugar", diz a jornalista, pontuando esta realidade social.

A especialista em diversidade e inclusão Sônia Lesse explica que situações como a vivenciada por Raquel são provas de que o racismo nos acompanha desde a colonização do Brasil e que até hoje a nossa sociedade enfrenta as consequências. "É uma sucessão de violências e de agressões que tem por objetivo manter essa pessoa de fora da construção da estrutura social", explica a especialista. 

Ainda de acordo com Sônia Lessa, a representatividade da pessoa preta, seja em cargos hierárquicos, políticos e entre outros, é uma forma de mudar esta realidade. A especialista acredita que a representação da Maria em uma mulher negra é importante e trouxe conexão com muitas pessoas, não apenas devotos. "A gente se vê num lugar positivo, de bondade, de se permitir existir. Desde o descobrimento da Santa, isso trouxe muita conexão com pessoas pretas que não se conectavam no cristianismo e com as imagens ali representadas", enfatiza.

Pessoas assim como a aposentada Maria Aparecida Pereira da Silva, de 62 anos, moradora de São Sebastião do Oeste, na região Centro-Oeste de Minas Gerais. "Eu não sei se o meu nome foi em homenagem à santa, mas eu me identificava porque a gente tinha a mesma cor. É diferente das outras figuras da Igreja Católica. Isso me faz ter um carinho maior por ela", conta. Entre as quatro irmãs de nome Maria, ela é a única que possui o sobrenome em homenagem à padroeira do Brasil. "Quando eu comecei a entender as coisas, que meu nome era de uma santa, eu fiquei muito encantada, pra mim foi um privilégio", diz.

Maria Aparecida, assim como a padroeira, é uma mulher preta. Em sua vivência, marcada pela simplicidade no interior do Estado e pela riqueza das experiências de fé, se tornou vítima do racismo repetidas vezes, principalmente durante a infância. "Andávamos em turminha de dez meninas. Tinha uma, bem branquinha, de olhos verdes... sempre que eu chegava ela me humilhava. 'Ô negra, cê chegou aqui', e cuspia", relembra.  As ofensas atingiam Maria Aparecida, que, por vezes, ignorava para continuar a fazer parte do grupo. "Eu nunca dei importância para aquilo. Eu sabia que me atingia e eu sempre colocava nas mãos de Deus. Eu sei lá por que ela fazia isso comigo", conta a aposentada.

A especialista Sônia Lesse explica esse comportamento de Maria Aparecida em razão de que, por diversas vezes, as pessoas negras tiveram que aprender recursos para se adaptarem e serem aceitas. "Se a gente vive numa sociedade que ainda assassina pessoas pela cor da pele, elas acabam fazendo um movimento inconsciente de autodefesa. Nós, pretas, fazemos isso desde a infância. É uma forma de continuar fazendo parte e existindo", conclui.

 

O preconceito nas narrativas

"As pessoas preferem dizer que a origem da santa é de cor clara, e não escura. Uma santa branca que ficou preta porque ficou submersa no rio por muito tempo", aponta a especialista em diversidade e inclusão Sônia Lesse. Para ela, a Igreja também é responsável por essa estrutura de racismo. A especialista aponta que, no Brasil, o catolicismo sempre teve uma grande contribuição na construção de poder. Algo que, segundo ela,foi feito junto à coroa portuguesa e buscou caracterizar os povos originários e de origem africana. "São movimentos que de alguma maneira tentam embranquecer uma representação, que está diretamente ligada na fé das pessoas, que elas acreditam ser bom, genuíno, milagroso. Como se não fosse possível uma santa negra ter uma representação de pureza", denuncia.

Pesquisadores indicam que a imagem originária de Nossa Senhora Aparecida seria uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, feita de terracota, um material constituído por argila cozida no forno. A cor escura, segundo esses estudiosos, seria consequência dos longos anos nas águas do rio Paraíba do Sul, em São Paulo, onde foi encontrada por três pescadores. A fuligem das velas nos oratórios, que acompanharam a imagem durante os 28 anos de peregrinação pelo interior de São Paulo, também teria colaborado para a cor escura da santa.

A especialista em diversidade e inclusão questiona a narrativa e acredita que essa “é uma maneira de conectar a simbologia de poder, de pureza, de fé das pessoas a algo que seja branco". Para a especialista, o mesmo ocorre com santos e santas de religiões de matriz africana, em que os orixás são negros, mas, muitas vezes, são representados em cor branca. "E a isso a gente chama de 'racismo religioso'" , aponta. 

Os estudiosos acreditam que a manutenção da cor negra na santa ocorreu devido à identificação dos devotos. A imagem teve uma grande aceitação da população de todo o país, que é majoritariamente preta e parda. Atualmente, 56% da população brasileira se autodeclara preta ou parda. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para a jornalista Raquel Aparecida Santiago,de 43 anos, apesar de algumas narrativas apontarem a origem da santa como branca, a decisão de mantê-la negra foi importante, já que a imagem foi encontrada no país onde a maioria é negra. "O fato de Nossa Senhora Aparecida ser a padroeira do Brasil, que é um país de maioria negra, assim como eu, me faz sentir mais fortalecida, mais representada", afirma.

Lesse aponta que essa identificação por meio da representatividade permite à população negra, principalmente mulheres, olhar para si mesma e identificar valor. "Um povo que sabe quem é, que conhece suas origens e raízes, é um povo provido de poder. Para essas mulheres que têm pela sua fé a padroeira, traz uma conexão diferente", explica.

Uma santa próxima do teu povo

“É uma Maria muito mais próxima a nós, seres humanos”, afirma o professor de mariologia e de teologia e irmão marista Afonso Murad. Segundo ele, Nossa Senhora Aparecida é próxima do povo desde que a sua imagem foi encontrada no rio Paraíba do Sul, em São Paulo. “É diferente de outras aparições de Maria, quando ela aparece gloriosa e comunica uma mensagem. Nossa Senhora Aparecida é encontrada submersa, suja, simples”, explica.

A imagem da padroeira foi encontrada pelos pescadores João Alves, Felipe Pedroso e Domingos Garcia, em 1717. Eles recolhiam peixes para servir ao governador da província de São Paulo e Minas Gerais, o dom Pedro de Almeida e Portugal, conhecido como o conde de Assumar. Após várias tentativas sem sucesso, eles retiraram do rio a imagem da santa. Ela foi encontrada em dois pedaços: primeiro o corpo e, em seguida, rio abaixo, a cabeça. Depois de colocar a imagem no barco, os pescadores, que antes não tinham pescado nada, encheram as suas redes de peixes.

Para o professor de teologia e de mariologia, a forma como a imagem foi encontrada também possui um sentido que aproxima o sagrado do humano. “Ela está imersa no barro. O mesmo barro que, conforme a narrativa bíblica, é utilizado para a criação do ser humano”, aponta. Ainda de acordo com o especialista, a proximidade da santa com o povo também se dá pelos relatos dos primeiros milagres. “Ali tem o sinal de liberdade, algo que era desejado pelas pessoas daquele período”, conta.

Além da pesca milagrosa, quando a imagem foi encontrada, outros milagres também são atribuídos a Nossa Senhora Aparecida. Um deles é a liberdade do escravo Zacarias. O homem voltava acorrentado com o seu feitor para a fazenda de onde havia fugido. Durante o caminho, ao passar pelo santuário, ele rezou para a santa e as correntes que o prendiam se soltaram. Zacarias ficou livre e liberto da escravidão. 

“Quantas situações humanas são marcadas pela escravidão, pela desumanização, Nossa Senhora Aparecida é uma figura que nos ajuda a nos comprometermos com uma sociedade mais justa e solidária”, aponta o professor, como uma justificativa de proximidade da santa com o povo brasileiro. Para ele, estes relatos são próximos à realidade, ainda marcada por desigualdades e preconceitos. “Esse sinal do escravo, que, ao fugir da escravidão, pede a Maria para que suas correntes se rompam, é extremamente atual para o Brasil”, conclui.

Dados de Racismo em Minas Gerais

  • Masculino

2021: 179
2021 (jan/ago): 107
2022 (jan/ago): 142

  • Feminino

2021: 210
2021 (jan/ago): 128
2022 (jan/ago): 174

Fonte: Observatório de Segurança Pública, da Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais.

Como identificar

  • Apelidar pessoas de acordo com características físicas e a partir de elementos de cor e etnia
  • Inferiorizar características estéticas da etnia
  • Considerar a vítima inferior intelectualmente por causa da etnia
  • Ofender verbal ou fisicamente a vítima
  • Desprezar costumes, hábitos e tradições da etnia
  • Duvidar da honestidade e competência da vítima sem provas
  • Recusar-se a prestar serviços a pessoas de diferentes etnias

Fonte: Ministério da Justiça e Cidadania

Como denunciar

  • Os casos de racismo podem ser denunciados pelo telefone 181. Essa é uma central de atendimento unificada disponível nos 853 municípios mineiros. O atendimento é gratuito, feito durante 24 horas. A denúncia não é investigada imediatamente, e o prazo de apuração é de até 90 dias.
     
  • As denúncias também podem ser feitas pela Polícia Militar (190), Polícia Civil (197), Corpo de Bombeiros (193) e pelo Disque 100.

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