“Numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, a frase da filósofa americana Angela Davis que ganhou as redes sociais recentemente foi colocada em prática por quatro professoras de Belo Horizonte que desenvolveram, no ano passado, projetos de educação antirracista com alunos da rede pública. Os trabalhos fizeram com que Minas Gerais se tornasse o Estado do Brasil com mais práticas contra o preconceito racial premiados na 8ª edição do “Prêmio Educar” realizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) nesta quinta-feira (20 de outubro). 

A leitura de escritoras pretas com alunos em fase de alfabetização, o intercâmbio com estudantes angolanos, a contação de histórias valorizando a ancestralidade e a promoção da igualdade racial, foram os principais temas trabalhados nas salas de aula e que levaram os projetos a ganharem os prêmios. Para os alunos pretos, que comumente sofrem racismo nas escolas e são inferiorizados, a educação antirracista contribui para uma construção identitária e para a autoestima. Já para os alunos brancos, os projetos trazem a oportunidade da convivência com a diversidade e o respeito ao próximo, que contribuem para a redução do racismo.

A professora Juliana Moreira Borges que foi uma das vencedoras com o “Projeto Griôs, contos e dengos por uma formação identitária positiva”, na Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Itamaraty, no bairro Santa Mônica, em Venda Nova, Belo Horizonte, pôde perceber na prática o impacto da educação antirracista nos seus alunos. “Para a criança negra é importante que os elementos da negritude estejam no contexto da escola para que ela se sinta representada. Ela sente que sua identidade é positiva. Um exemplo disso é um pai que foi contar a história dos sonhos da sua vida que foram alcançados. Um homem preto mostrando que alcançou seus sonhos de ter uma família. Ele trouxe a ideia de que os sonhos são possíveis. Isso foi tão forte que um dia um dos meus alunos disse que não ia desistir por que o pai da Sara tinha ensinado para ele que os sonhos são possíveis e que não morrem”, conta a professora. 

Juliana trabalhou a prática africana griô que consiste no resgate da ancestralidade e na contação de histórias dos mais velhos ensinando para os mais novos. Foi isso que aconteceu na Emei, os familiares dos alunos de 5 anos foram para a escola e contaram histórias que traziam ensinamentos para as crianças. Os pequenos e a educadora criaram juntos uma música sobre o griô e aprenderam a tocá-la no tambor. 

O instrumento é guardado com carinho pela pequena Alice Emanuelle Quintiliano de Avelar, de 6 anos. Ela é uma criança preta que já sofreu preconceito na escola e que, com o projeto, pode afirmar sua identidade. “Um coleguinha disse que ela não tinha tomado banho por estar bem escurinha. Ela ficou muito triste quando aconteceu e não queria mais voltar para a escola”, relembra a mãe dela, a atendente Sabrina Luiza de Jesus, de 27 anos. A mãe participou do projeto indo até a Emei para contar histórias ancestrais para a filha e os colegas de turma. “Como mãe de menina preta eu achei esse projeto muito importante na identidade das crianças. Acho que abriu a mente da minha filha. Eu já trabalho com ela em casa, que não pode ter preconceito com ninguém de forma alguma, mas ensinar isso na escola ajuda muito a combater o racismo”, avalia. 

Enquanto os pequenos aprenderam com as histórias contadas pelos adultos, os adolescentes foram protagonista de suas próprias histórias nos projetos de educação antirracista. Os estudantes do 9 ano da Escola Municipal Lídia Angélica, do bairro Itapoã, na Pampulha, em Belo Horizonte, fizeram um intercâmbio virtual com estudantes de uma instituição da Angola, na África, por meio do “Projeto Intercâmbio Raízes Angola Brasil”, ministrado pela professora Aline Neves. 

Os estudantes apresentaram seus países uns aos outros a partir da chave da diversidade, da riqueza material, espiritual e humana. Divididos em grupos, eles receberam temas a serem estudados e fizeram apresentações. “Era preciso construir com os estudantes um projeto baseado em uma educação antirracista, na superação de estereótipos e apelidos de cunho racista, principalmente por que é nos meios virtuais que muitos estudantes têm sido sido encorajados a praticar racismo”, destaca Aline. 

A professora ressalta que para os alunos pretos brasileiros o projeto trouxe confiança e segurança para falar de sua origem africana. “Não é apenas um privilégio do branco saber suas origens e se orgulhar. Embora, nós negros não saibamos exatamente de qual região são nossos antepassados, sabemos por meio desse projeto que eles só foram sequestrados porque detinham conhecimentos específicos para realização de trabalhos que os europeus não tinham competência”, explica. Ela complementa ainda que os alunos angolanos perceberam que sua história de luta contra o racismo e o colonialismo foram soterradas nas escolas. “E que há muito o que se registrar e colocar disponível para que outros estudantes, ou até mesmo a população, possam se expressar por meio do orgulho de pertença. Aos estudantes brancos, a possiblidade de identificarem as influencias da história e da cultura negra e indígenas no seu jeito de ser, de se relacionar com outras pessoas, pois a Educação antirracista não são para negros”, enfatiza. 

Para a aluna Ana Carolina Fernandes dos Santos Augusto, de 15 anos, o projeto coordenado pela professora Aline Neves, foi muito importante para a positivação de sua negritude e combate de preconceitos.  “Sabemos que o racismo em nosso país é estrutural, e temos que reverter essa história”. A aluna destaca a experiência de ter participado da construção de um projeto tão colaborativo e com grande  protagonismo juvenil.

A mãe da estudante, a doutoranda em Educação, Cláudia Elizabete dos Santos Augusto, 47 anos, mencionou ter identificado episódios de resistência por parte de alguns estudantes e responsáveis durante o desenvolvimento do projeto, devido ao racismo presente em nossa sociedade. “Como se não fosse uma abordagem obrigatória e respaldada legalmente pela Lei 10.639/03. A implementação da temática Étnico-racial na Escola, além de relevante é um direito inquestionável dos estudantes. O trabalho desenvolvido pela professora Aline foi maravilhoso!”, avalia Cláudia.

No Brasil a obrigatoriedade da educação antirracista está fundamentada nas lei 10.639/2003 e 11.645/2008 que regulamentam o ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” na educação básica. 

Casos de crimes relacionados ao racismo quase triplicaram em Minas de 2019 para 2022 

Citando a frase da escritora e ativista Lélia Gonzales que disse: “a gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel, que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que a gente vai construindo”, a professora Conceição Pinheiro enfatizou a importância de debater a igualdade racial nas escolas. “É uma questão de sobrevivência. Quanto antes afirmamos nossa identidade, mais preparados estaremos para  desenvolver todo nosso potencial para as  aprendizagens. O que se observa entre os estudantes com esse projeto é a melhoria da autoestima e do autocuidado. Além de trazer mais segurança e o  empoderamento para não aceitar passivamente certas situações de preconceito”.

Foi nessa perspectiva que ela desenvolveu o projeto: “Promoção da Igualdade Racial” que ganhou o prêmio pela Escola Municipal Anne Frank, no bairro Confisco, na Pampulha. Durante o projeto foram feitos debates e rodas de conversa de forma respeitosa entre os estudantes para discutir o tema. A escola tem desde a educação infantil até o ensino fundamental II, que vai até o 9 ano. As atividades foram realizadas adaptadas para cada idade, mas com um único objetivo: a prática da educação antirracista. 

A importância de combater o racismo nas escolas se mostra evidente quando dados do governo de Minas apontam que os casos de crimes relacionados a pessoas pretas nas instituições de ensino do Estado quase triplicou se comparados os anos de 2019 e 2022 quando as aulas foram presenciais. Neste ano, Minas Gerais registrou 28 casos de crimes de preconceito de raça ou cor e de injúria com causa presumida de racismo em instituições de ensino públicas e particulares de janeiro a julho. Se compararmos com o mesmo período de 2019, os registros de crime quase triplicaram nas escolas mineiras, foram 10 registros de ocorrências. Os dados de 2020 e de 2021 não servem como comparativo, pois nestes anos com a pandemia pelo coronavírus as aulas ficaram online e por isso o número de registros desses crimes foi bem menor. 

A professora Danielle Aparecida Barbosa que ganhou o prêmio com o projeto “A literatura escrita por mulheres negras: uma experiência de leitura na alfabetização'' disse que a notícia de que as mulheres são as maiores vítimas de racismo aliada a percepção de que a maioria das crianças da Escola Municipal Florestan Fernandes, no bairro Solimões, na região Norte de Belo Horizonte, eram criadas por mulheres negras foi o que a motivou a desenvolver o projeto. 

“Em conversas com as crianças percebi que a maioria delas eram cuidadas por mulheres, as mães, tias, avós, parentes são as que estão à frente do sustento da família. Pensei em uma forma de valorizá-las. Acredito que conhecer mulheres negras inspiradoras, como são as autoras que trabalhamos, importa, sobretudo, quando temos notícias de que as mulheres são as maiores vítimas de um racismo que é estrutural no país, circunscritas em um processo de violência que aumentou exponencialmente nos últimos anos”, destacou. 

Pelo programa na alfabetização infantil, os alunos trabalharam livros como “Meu crespo é de rainha”, da escritora Bell Hooks; “Minha mãe é negra, sim!”, da doutora em educação Patrícia Santana; “Crespin”, da poetisa Jussara Santos; “As coisas simples da vida”, da Elaine Marcelina; “Betina” , de Nilma Lino Gomes, entre outras obras. 

Para especialista educação antirracista ajuda a diminuir evasão escolar de pessoas pretas 

O educador e especialista em equidade de gênero e de raça Billy Malachias destaca que a política antirracista nas escolas é importante para a construção de uma sociedade mais igualitária e mais preparada para as relações de convivência em todos os âmbitos da sociedade. “Temos a oportunidade de oferecer para todas as pessoas, independente de credo, religião, sexo, cor raça, uma educação de qualidade, com a possibilidade de se ampliar o conhecimento a cerca de todos em termos de grupo de pertencimento, e isso tende a melhorar as relações de convivência, que por sua vez estão distribuídas nas diferencia instância da sociedade, no trabalho, nas atividades socioculturas, nas atividades religiosas. Então é um caminho em busca de uma humanidade plena”, explica.

Para Malachias, esses trabalhos nas escolas devem impactar as atitudes dos alunos brancos,  que muitas vezes ocupam o lugar de opressores, e para os alunos pretos se torna uma oportunidade deles serem “enxergados” nas instituições de ensino e perceberem uma boa vontade da comunidade escolar com as demandas deles. “A tendência é que esses estudantes tenham uma melhora em seu desempenho escolar e que ocorram menos evasões escolares que são muito mais comuns de alunos pretos”, destaca. Para ele, o racismo influencia na autoestima das vítimas. “Essas pessoas não se sentem aptas a fazer aquilo que elas são aptas a fazer. A sociedade racista como a brasileira tende a regular a aspiração das pessoas que são discriminadas pela cor/raça, elas se sentem menos aptas para determinadas coisas e são educadas dessa forma. A sociedade informa isso de maneira direta e indiretas e as pessoas não se veem aptas a ocupar lugares que elas ocupam ou que almejam e não se sentem aptas a aprenderem coisas que elas têm total condição de aprender”, enfatiza o educador. 

O prêmio 

As quatro professoras de Belo Horizonte que ganharam o prêmio e outros 12 educadores de outras partes do Brasil vão receber a premiação durante o evento “Diálogos para uma Educação Antirracista’, que vai ocorrer nesta quarta-feira (19 de outubro) e nesta quinta-feira (20 de outubro) , no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Além da premiação, o evento tem como foco o intercâmbio entre educadores, pesquisadores, estudantes, organizações parceiras e lideranças negras, na discussão das pautas antirracistas e de equidade de gênero.

O encontro e o prêmio são promovidos pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), que existe desde 1990 e atua na articulação de movimentos sociais na defesa dos direitos e demandas da população negra, em especial, por uma educação pública com equidade racial e antirracista na infância e juventude, bem como nas lutas das mulheres negras.