'Fator de risco'

Risco de morte por Covid é 46% maior entre a população negra em Minas Gerais

Especialistas apontam que é possível que o retrato seja ainda mais desigual, já que a coleta de informações sobre cor ou raça foi ignorada na maioria das notificações

Por Cristiano Martins
Publicado em 10 de julho de 2020 | 18:37
 
 
 
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Desde os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, especialistas alertam para a desigualdade social e o racismo estrutural como fatores de risco durante a pandemia. Novos dados compilados pela Secretaria de Estado de Saúde (SES) e analisados pelo Coronavirus-MG.com.br reforçam essa hipótese ao revelar que a letalidade da doença é 46% maior entre as pessoas declaradas pretas em relação às brancas em Minas Gerais.

Considerando apenas os pacientes com menos de 60 anos de idade, a diferença mais do que dobra, chegando a 119% na comparação entre pretos e brancos contaminados pelo vírus fora desse grupo de risco. Os dados passaram a ser divulgados no último dia 7 de julho e, apesar de parciais, são os mais completos e detalhados sobre a situação em Minas até o momento.

Para especialistas consultados pela reportagem, é possível que o retrato seja ainda mais desigual. Isso porque a coleta de informações sobre cor ou raça foi ignorada na maioria das notificações, apesar de ser obrigatória: mais precisamente, em 61% dos casos e 22% dos óbitos. Isso se deve basicamente ao não-preenchimento das fichas de atendimento e internação.

"A qualidade do registro tem relação com o serviço de saúde e o nível socioeconômico. Nas regiões de maior vulnerabilidade, a qualidade tende a cair. Nossa hipótese é que a população negra compõe a maior parte desses dados desconhecidos", analisa a doutora Valéria Cristina de Oliveira, pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) e do projeto Termômetro da Crise Covid-19, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

De acordo com os dados disponíveis, o contágio foi fatal para 111 de 1.347 mineiros pretos diagnosticados com Covid-19 (8,2%). Entre os brancos, foram 8.460 casos confirmados e 476 óbitos (5,6%). Levando em conta apenas os pacientes com menos de 60 anos, 33 de 1.040 pretos morreram (3,2%), enquanto 96 de 6.639 brancos não resistiram à doença (1,4%).

Em relação aos registros totais, os pretos representam 6,5% dos casos e 10,5% das mortes, enquantos os brancos respondem por 40,7% e 45,2%, respectivamente. Se desconsiderado o grupo de risco composto pelas pessoas idosas, a desigualdade é ainda maior: a população preta aparece em apenas 6% dos testes positivos, mas 13% dos óbitos. Os brancos, por sua vez, são 40% dos contaminados e 36% das vítimas.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 75% dos 13,5 milhões de brasileiros vivendo em extrema pobreza são pretos ou pardos.

Entenda os números

Os dados são provenientes do Sistema de Notificação de Síndrome Gripal (e-SUS VE) e do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep) – ambos gerenciados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – , além de exames realizados em laboratórios públicos e privados do estado e dos chamados "testes rápidos" aplicados em farmácias ou empresas.

A classificação é baseada na autodeclaração segundo o padrão de raça adotado pelo IBGE: branca, preta, amarela, parda ou indígena. O conjunto de pessoas pretas e pardas representa o conceito mais abrangente de população negra.

Além das informações ausentes nas notificações, há ainda um atraso na divulgação dos dados detalhados por paciente. A Secretaria de Estado de Saúde (SES) já confirmou oficialmente 70.086 casos e 1.504 óbitos em Minas Gerais, mas o banco de dados atualizado até o dia 8 de julho apresenta apenas 53.701 registros, com 1.355 vítimas.

Sobre essa defasagem, a SES informa que "o tempo de entrada de informações nos sistemas oficiais tem uma demora compatível com o processo de vigilância epidemiológica, além de uma subnotificação dos casos por parte dos municípios".

Registro é obrigatório

A necessidade da declaração de raça ou cor nos registros de saúde foi estabelecida na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra ainda no governo Lula (maio de 2009) e tornou-se obrigatória a partir de uma portaria editada pelo Ministério da Saúde durante o governo Michel Temer (fevereiro de 2017). Mesmo assim, a questão ainda tem sido ignorada na maioria das notificações durante a pior crise sanitária já vivida no país.

Os dados só foram incluídos pelo Ministério da Saúde nos sitemas e-SUS VE e Sivep-Gripe no dia 10 de abril, em resposta a demandas apresentadas pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e organizações de defesa dos direitos da população negra.

O Governo de Minas Gerais, por sua vez, passou a disponibilizar as informações detalhadas apenas no último dia 7 de julho – os boletins epidemiológicos publicados diariamente pela Secretaria de Estado de Sáude (SES) traziam os números resumidos desde o dia 26 de junho.

A divulgação desses dados em nível estadual foi determinada após uma proposição apresentada pelas deputadas estaduais Andréia de Jesus (Psol), Leninha (PT) e Ana Paula Siqueira (Rede). O artigo foi aprovado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e promulgado pelo governo Romeu Zema (Novo) no dia 19 de junho.

Segundo os ativistas e legisladores, esses dados são fundamentais para o entendimento sobre a desigualdade social, o desequilibrio no acesso à saúde e a evolução da pandemia entre as parcelas mais vulneráveis da população.

O fenômeno não é uma exclusividade do Brasil. O jornal New York Times analisou dados de 640 mil pessoas contaminadas nos Estados Unidos e concluiu que negros e latinos apresentam três vezes mais chances de serem infectados e um risco quase duas vezes maior de morrer pela doença em relação à população branca no país.

Confira essa matéria no site coronavirus-mg.com.br

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