Os direitos trabalhistas de milhares de brasileiros passam por um momento de indefinição nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes ordenou a paralisação dos processos sobre a pejotização, e, agora, detalhes sobre a legalidade dessa forma de contratação serão decididos pelos magistrados.
A pejotização é a forma de contratação dos profissionais como pessoas jurídicas (PJs), em vez de como empregados sob as normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A modalidade ganhou força após a reforma trabalhista de 2017 e sucessivas decisões do STF que reconhecem a legalidade de terceirizar diferentes funções em uma empresa, inclusive sua atividade principal.
Ocorre que, desde então, algumas empresas utilizam essa possibilidade como uma forma de ter empregados nos moldes da CLT — com horário definido de expediente, tempo limitado de almoço e obrigatoriedade de trabalho presencial, por exemplo — sem pagar encargos trabalhistas. Em teoria, um PJ, contratado como autônomo, não precisaria seguir todos esses preceitos.
“A grande questão é destacar a terceirização legítima da fraude. Fraude é fraude, um embuste. É alguém se beneficiando e alguém sendo prejudicado”, pondera o mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em direito do trabalho Ricardo Souza. “Se não houver controle sobre o que é fraude e tudo puder ser pejotizado sem régua, os efeitos serão não só no mercado de trabalho, mas na arrecadação do Estado com INSS e Imposto de Renda. O INSS tende a implodir se a pejotização for liberada de forma desgovernada”, completa.
O número de processos na Justiça do Trabalho que reivindicam o reconhecimento da relação de emprego explodiu desde 2018. Ele passou de 150,5 mil naquele ano para 285 mil em 2024, alta de 89,4%. Repetidas vezes, o STF reconheceu a legitimidade dos contratos de PJ, enquanto a Justiça do Trabalho deu vitória a milhares de trabalhadores. O resultado, segundo Gilmar Mendes, foi uma inundação de recursos de advogados das partes perdedoras endereçados diretamente ao STF — chamados reclamações constitucionais.
Em sua decisão, o ministro pondera que o cenário atual é de insegurança jurídica, pois as decisões da Justiça do Trabalho são em seguida encaminhadas ao STF. “Parcela significativa das reclamações em tramitação nesta Corte foi ajuizada contra decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva. Esse fato se deve, em grande parte, à reiterada recusa da Justiça trabalhista em aplicar a orientação desta Suprema Corte sobre o tema”, diz, no texto.
Para tentar por fim a esse embate, o STF escolheu um único caso que será avaliado e servirá como exemplo para todos os demais. Trata-se do processo de um corretor de seguros franqueado e uma grande corretora, que ainda não tem data para ser julgado. Na discussão, o STF precisa decidir três pontos:
- se a Justiça do Trabalho é a única competente para julgar casos de fraude na contratação;
- a licitude da pejotização ou terceirização;
- de quem deve ser o ônus da prova para comprovar a fraude, do empregado ou do empregador.
Até lá, todos os processos correntes sobre o tema estão suspensos. É possível entrar com novos processos, mas eles também serão paralisados, explica o advogado Ricardo Souza. “No caso de discussões trabalhistas, temos a questão da prescrição após dois anos da rescisão do contrato. Então, se estiver próximo desse prazo, recomendo que a ação seja distribuída”.
A reportagem conversou com um trabalhador contratado como PJ que relata que, na prática, tem as mesmas obrigações de alguém com carteira assinada. “Eu tenho que chegar no horário e tenho que sair em certo horário. Cumpro um determinado número de horas, e o salário que eu ganho é como se fosse pelas minhas horas trabalhadas, mas são horas fixas”, relata. Ele tem alguns direitos, como férias remuneradas, mas outros sequer são cogitados, como pagamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Caso seja demitido, também não terá direito à multa de 40% sobre o fundo e ao valor das férias vencidas, por exemplo.
Por isso, diz cogitar entrar na Justiça caso seja mandado embora sem essas garantias. “Exigem que as pessoas trabalhem como se fossem CLT, mas os deveres do patrão não são cumpridos”, enfatiza. A depender das decisões futuras do STF, o destino de trabalhadores como ele pode mudar.
Em outras ocasiões, o STF já entendeu, por exemplo, que trabalhadores com alto nível de instrução estão cientes sobre as condições dos contratos de PJ, que em alguns casos implicam um salário mais alto, já que não há os descontos previstos na CLT. Em 2023, uma advogada que entrou na Justiça contra o escritório onde trabalhava perdeu quando a ação foi avaliada pelo STF, que argumentou que ela não era hipossuficiente, isto é, uma pessoa em situação de fragilidade em relação ao empregador.