Quando o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2024 foi divulgado, no dia 3 de novembro, primeiro domingo de aplicação da prova, não foram só os candidatos, com caneta em punho, a serem convocados a refletir sobre os “desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Rapidamente, a proposta de dissertação repercutiu, embalando debates e inspirando textos, vídeos, podcasts. 

Essas reverberações, agora, alcançam o Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quarta-feira (20) em homenagem à memória de Zumbi dos Palmares. Na data, que tradicionalmente coloca em relevo a luta, a resistência e a contribuição dos afrodescendentes na formação do país, o Magazine convidou artistas, representantes setoriais e agentes culturais de diferentes searas a apontar caminhos para que herança africana seja valorizada e reconhecida no seu meio de atuação e indicar armadilhas que, se não forem desarmadas, ameaçam atravancar esse processo.

O mosaico de respostas ouvidas pela reportagem sugere que essa almejada valorização passa por ações que exigem enfrentamento e partem, necessariamente, pelo reconhecimento da matriz negra como elemento basilar e central na formação da identidade brasileira. Não é só. Há ainda a necessidade de medidas concretas visando, por exemplo, a aplicação de medidas educativas e a implementação de políticas de fomento. Outra frente de atuação passa pela regulamentação de leis que, embora já existam, seguem sendo mal executadas.

‘Histórico de negligência e marginalização’

Uma das principais vozes da cena musical de Belo Horizonte, a cantora Adriana Araújo é enfática ao dizer que, do ponto de vista do samba – “que por si só é uma essência da herança africana” –, é sensível o histórico de negligência e marginalização da contribuição do ritmo na cultura brasileira. “Então, o desafio para valorizar essa herança, sobretudo preta, é enfrentar diariamente a criação de estereótipos, apropriação cultural, o não reconhecimento do músico em si, como profissão e a consequente desvalorização e desprestígio”, crava. 

A cantora Adriana Araújo | Crédito: Adriana Araújo | Crédito: Fred Magno/O Tempo
A cantora Adriana Araújo | Crédito: Adriana Araújo | Crédito: Fred Magno/O Tempo

“Para ultrapassar essas barreiras, faz-se necessário fomentar a conscientização sobre a importância de mantermos viva a herança africana no samba e na cultura brasileira. Isso inclui educar sobre a história e as contribuições do povo preto e apoiar também os artistas não brancos que mantém a cultura pulsante. Acredito que, agindo assim, poderemos valorizar verdadeiramente a essência africana do samba e as diversas vertentes da música preta no Brasil, onde quem pisar em territórios banhados por essa cultura entenda que o samba é música sagrada para nós, que além de tudo, vivemos disso”, complementa.

Também um artista que se notabilizou por seu trabalho na música, somando mais de 25 anos de estradaSérgio Pererê vibrou com a proposta de redação ao mesmo tempo que viu, nos debates que sucederam à prova, a oportunidade de avançar.

O músico Sérgio Pererê | Crédito: Tamas Bodolay/Divulgação
O músico Sérgio Pererê | Crédito: Tamas Bodolay/Divulgação

“Se tivemos agora, como tema, os ‘desafios da valorização da herança africana no Brasil’, nós podemos, em outro momento, debater a herança africana em si, pois estamos em um momento de avançar no entendimento do que é essa herança e nos entendermos como frutos dessa diáspora. E, para isso, precisamos dar mais passos inclusive no ambiente escolar”, sustenta o cantor, compositor, multi-instrumentista, diretor musical e ator, que prepara a série de shows “Vozes Ancestrais”, em que, ao lado da norte-americana Alissa Sanders, entre quinta-feira (28) e domingo (1º), no CCBB BH, evoca cantos seculares criados por escravizados negros, resgatando as origens comuns das músicas brasileira e americana. 

‘Precisamos nos assumir um país de maioria negra’

Dançarino e coreógrafo há 43 anos, Evandro Passos estuda como a herança africana moldou estilos de dança no Brasil. O interesse dele se concentra, principalmente, na dança afro-brasileira. Suas pesquisas sobre o tema estão sendo levadas, agora, para a Universidade de Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Para ele, é urgente que o Brasil e o brasileiro, antes de tudo, se reconheçam como “uma nação construída também por mãos de homens e mulheres africanos, que para cá vieram escravizados”.

O dançarino e coreógrafo Evandro Passos | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo )
O dançarino e coreógrafo Evandro Passos | Crédito: Flávio Tavares/O Tempo

“O caminho para sanarmos esta lacuna é fazer com que as escolas, do ensino infantil ao ensino universitário deem visibilidade e executem seriamente a lei 10.639, da obrigatoriedade do ensino e da cultura afro-brasileira nos currículos escolares”, argumenta, antes de celebrar as lutas e reivindicações do Movimento Negro Unificado – “que desde sua criação nos anos 70 já dizia que, enquanto não nos assumirmos um país de maioria negra, seremos um país de meia boca”.

Raciocínio semelhante faz o ator e professor de geografia Renato Novaes. “Mais da metade da população brasileira (55%) se declarou como preto ou pardo no último censo, realizado em 2022 – com muito custo, inclusive”, aponta. “Na teoria, portanto, a valorização da herança africana não deveria ser um desafio. No entanto, o que vemos é uma tentativa de apagamento dessa cultura em diversas frentes”, prossegue o artista que, neste ano, completou sua primeira década de cinema, somando trabalhos que lhe renderam prêmios, entre os quais três Candangos – como são chamadas as estatuetas distribuídas no Festival de Brasília –, que colocam Novaes no hall do seleto grupo de atores que coleciona premiações em todas as categorias de atuação distribuídas no concurso.

O ator e professor Renato Novaes | Crédito: Fred Magno/O Tempo
O ator e professor Renato Novaes | Crédito: Fred Magno/O Tempo

O ator conclui com uma leitura otimista dos dados registrados no censo de 2022, que trouxe a informação que, pela primeira vez, a população que se declara parda (45%) superou a população que se declara branca (43,5%). Para ele, um sinal de autoentendimento essencial para o reconhecimento e valorização da herança africana no Brasil. “As artes ocupam um papel imprescindível nesse processo de autoconsciência brasileira – que é preta e africana na sua essência”, cita.

‘Influência se manifesta no todo’

O artista visual Froiid, que explora a relação entre a arte e as tradições populares, com interesse particular pelos jogos, também argumenta que, possuindo a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta, a influência africana no Brasil é óbvia e se manifesta no todo, passando por características fundamentais de nossa identidade, como vocabulário, culinária e até por nossa forma de agir com o mundo.

O artista visual Froiid | Crédito: /Divulgação
O artista visual Froiid | Crédito: Pedro Napolitano Prata/Divulgação

“Eu acredito que a valorização, então, passa necessariamente pelo reconhecimento dessa negritude e de seu caráter potencializador e criador de uma identidade brasileira, inclusive de uma identidade brasileira contemporânea”, reflete.

“A partir disso, podemos caminhar com um processo de compreensão e construção desse Brasil extremamente diverso nos seus discursos e também nas suas contemporaneidades”, diz, lembrando que a constituição dessa herança é também diversa: “Precisamos ter em mente que diferentes povos pretos vieram para esse país trazendo suas culturas, que foram carregadas e impulsionadas nesses mais de 400 anos de diáspora”. Froiid acrescenta, então, que a valorização dessas influências passa por um reconhecimento delas em nós mesmos, não simplesmente em relação ao outro.

Por sua vez, Gleyce Kelly Heitor, diretora de Educação do Instituto Inhotim, maior museu a céu aberto da América Latina, localizado em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, se alinha à perspectiva de que a educação é um caminho para a valorização da herança africana no Brasil. Nesse sentido, ela sustenta que os museus podem ser importantes aliados.

Gleyce Kelly Heitor, diretora de Educação do Instituto Inhotim | Crédito: Ana Clara Martins/Divulgação
Gleyce Kelly Heitor, diretora de Educação do Inhotim | Crédito: Ana Clara Martins/Divulgação

“Para isso devem assumir o compromisso de contar histórias que inspiram uma sociedade mais equânime, plural e diversa, através de programas educativos, exposições e práticas de colecionismo que interroguem e construa outras perspectivas sobre como as pessoas africana, em diáspora, foram centrais na construção do que entendemos hoje como Brasil”, avalia, lembrando que contar uma história, nos espaços museológicos, significa sempre um gesto de seleção e de escolha. E, muitas vezes, de enfrentamento. “Podemos dizer que foi preciso haver, assim como nos livros de história, muitas críticas para que os museus incluíssem nas suas narrativas – de forma positiva – a produção afro-brasileira como central no processo de construção do país”, reconhece.

Regulamentação é desafio

Tanto quanto a organização de exposições de arte, a produção audiovisual também é um exercício de escolhas. Escolhas que, no caso da valorização da herança africana no Brasil, precisam ser feitas em um horizonte amplo. É o que avalia a curadora, pesquisadora e realizadora de cinema Tatiana Carvalho Costa, presidenta nacional da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), que também frisa como são diversos e onipresentes os contributos africanos para a formatação da cultura brasileira.

“São contribuições que estão presentes em nosso cotidiano, em nossa língua, gastronomia, arquitetura, sobretudo nas cidades históricas, e tecnologias, como de cultivo da terra, mineração e siderurgia”, assinala. Em Minas Gerais, especificamente, ela ressalta a força da tradição Bantu, que encontra expressão, por exemplo, nos congados e reinados – “que não são folclores, mas, sim uma tradição, uma tecnologia social, uma matriz de pensamento que nos ajuda a entender nossa existência”, avalia.

Tatiana Carvalho Costa, presidenta da Apan | Crédito: Pablo Bernardo/Divulgação
Tatiana Carvalho Costa, presidenta da Apan | Crédito: Pablo Bernardo/Divulgação

Tatiana sustenta que tudo isso, no audiovisual, pode ser e já tem sido trabalhado. “Há, hoje, uma grande quantidade de pessoas negras olhando para essa cultura em séries e filmes, sejam longas, curtas ou média-metragens, documentários, ficções ou animações”, aponta. Contudo, ela argumenta que esses trabalhos precisam de mais incentivo para existir e circular.

“Já existem iniciativas nesse sentido, como plataformas de streaming dedicadas à cultura negra ou catálogos específicos. Mas é preciso, por exemplo, que a legislação brasileira seja cumprida, de forma que parte importantíssima do que ocupa o imaginário coletivo, que está nas grandes plataformas de streaming, obedeça uma regulação brasileira: é necessário regulamentar o vídeo sob demanda no país para que esses serviços deem mais espaço às produções brasileiras”, registra a presidenta da Apan, alinhada à carta aberta ao governo Lula divulgada na terça-feira (19) por setores do audivisual fora do eixo Rio-São Paulo.

Já no campo da educação, ela lembra da lei 13.006, de 2014, que ainda precisa ser regulamentada, que determina ao menos 2 horas mensais de conteúdo independente brasileiro no contexto da educação básica. “Seria uma oportunidade extraordinária para fazer uma interseção com outra legislação que já existe, que determina o ensino de cultura africana, afro-brasileira e indígena no contexto escolar”, opina, sublinhando já existirem iniciativas nesse sentido, mesmo que ainda não sejam coordenadas.

A questão, sugere Tatiana, é que essa regulamentação dependendo do engajamento no Congresso Nacional. “Mas me parece que esse congresso atual, tão conservador, não se preocupa com a valorização de uma cultura verdadeiramente brasileira, apesar de boa parte das pessoas que estão lá se considerarem patriotas – porque a cultura brasileira não é só europeia e branca, ela é predominantemente negra e indígena”, conclui.