Habituado a transitar entre Bergman, Cronenberg, Howard Hawks e Fellini, o irrequieto Inácio Araujo retomou um prazer antigo, que o levou ao tempo em que ele utilizava a máquina de escrever, mas, nesse caso, o conduziu para o futuro. Na década de 1980, o crítico de cinema, um dos mais renomados do país, foi premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria autor revelação graças ao romance – e roteiro cinematográfico – “Casa de Meninas”.
Agora, do alto de seus 76 anos, ele retorna à literatura com “Utopia 3: Últimas Notícias do Século 25”, com lançamento previsto para o próximo dia 12 de dezembro, e indicado como arguto presente às vésperas natalinas. A ideia para o romance de atmosfera distópica surgiu no começo da pandemia, e não deixa de configurar uma ironia que o título escolhido para nomeá-lo seja justamente o oposto, “utopia”, aquela que, de acordo com o uruguaio Eduardo Galeano, “está lá no horizonte” e se afasta a cada dois passos dados.
“A sensação de que algo muito perigoso acontecia, seja mundialmente, seja aqui no Brasil, que passava por transformações imensas relativas ao garimpo, perseguição a índios, destruição de florestas, matança de gays e etc., era brutal”, explica Inácio, que, frente à pregação de “uma espécie de neoliberalismo de extrema-direita, com perseguições de natureza talvez nazista”, recorreu à escrita afim de tentar dar conta do impacto sofrido.
“Como era muito difícil para mim assimilar esse tipo de mudança, acho que minha cabeça voou para um futuro distante, bem remoto. A pandemia, o isolamento, me ajudou a procurar algo fora de minhas preocupações imediatas. Foi um movimento saudável, porque evitou que eu fizesse um livro de proselitismo, que eu detesto”, dispara.
As referências conjugaram paixões que o acompanham desde sempre, como o cinema de invenção e a literatura de ficção científica. Inácio cita “As Crônicas Marcianas”, publicado pelo norte-americano Ray Bradbury em 1950, e “Alphaville”, dirigido pelo francês Jean-Luc Godard em 1965. “Eu queria que o futuro fosse como no filme de Godard, onde o grande cérebro é não mais que um ventilador. Porque, para nós, só o presente existe, as preocupações são sempre do presente…”, afiança Inácio.
Trama
Passada no século 25, “com a humanidade conformada pelo poder universal que se estabeleceu depois de longas guerras”, a história flagra dois replicantes, ou seja, androides que se assemelham a clones humanos, tentando “manter viva a chama da rebelião na Terra”. “Um deles tem um programa alimentado por diversos autores anarquistas dos séculos 19 e 20, e o outro foi programado com os textos do antigo líder trotskista J. Posadas. Juntos, eles buscam promover uma revolução em um mundo de pessoas voluntariamente submissas”, conta Inácio, que admite ter pensado numa trama “que deveria começar como espécie de plágio das ‘Crônicas Marcianas’...”.
“Depois, haveria a busca de uma solução para o mundo, uma travessia de deserto que, para mim, remeteria a ‘Os Sertões’ (de Euclides da Cunha). A parte final veio, surpreendentemente, de uma biografia de Lévi-Strauss que me caiu nas mãos. Tudo aconteceu de forma meio surpreendente. Antes de escrever eu tinha um plano quase preciso. Mas, enquanto escrevia, me ocorria uma montanha de ideias, elas me pareciam boas, às vezes ótimas, mas não formavam um conjunto. O todo era amorfo. Sem eu perceber como, as coisas começaram a se acomodar”, complementa o crítico.
Fato é que suas personagens trazem uma relação explícita com a política, com inspiração direta na realidade, como no caso do revolucionário argentino J. Posadas, que unia ufologia a socialismo. “Eu gosto de ambos os personagens, são tipos sonhadores. Mesmo Posadas, que foi muito desprezado pelas pessoas de esquerda em seu tempo, tem escritos bem interessantes sobre música e pintura. Às vezes ele é exótico, sim, mas essas pessoas me interessam muito. E eu achei divertido que essa salvação do território humano fosse liderada por dois robôs. Eles são uma espécie de reserva de inconformismo do futuro”, defende Inácio.
Conexões
O crítico não tem pretensão de saber o que virá pela frente. “Não sou capaz de prever o que posso um dia querer escrever, o que me mobilizará. Como te disse, não sou profissional, não tenho obrigação de buscar um tema. O acaso é que acaba me movendo. Não sei se isso é o melhor, mas é assim que acontece comigo”, justifica ele, que aproveita para tecer considerações entre os ofícios de escritor e crítico de cinema.
“Não vejo conexão entre as duas atividades. O crítico procura entender o que um filme disse a ele. O escritor, nesse sentido, é mais livre. Mas isso não quer dizer que não exista conexão. Não tenho nenhuma certeza de que seja assim. No caso de ‘Utopia 3’, uma ideia se instalou e logo vi que ela não se resolveria num conto, então era escrever, mergulhar nela e ver se alguma coisa acontecia. E o que acontecia. Será que aquilo fazia sentido?”, relembra. Por outro lado, ele percebe aproximações recentes entre o jornalismo, a literatura e a sétima arte.
“São áreas muito dependentes de transformações tecnológicas. Acho que o cinema é um tanto ameaçado pelo streaming, que é uma mesquinharia em termos de concepção. E o jornal, como lugar de reflexão, sofre com a concorrência das mídias sociais. Não deixarão de existir, mas sofrem. A literatura, a ficção, também passa por uma crise, porque os leitores não acreditam mais na ficção. Só acreditam em histórias ‘baseadas em fatos reais’. Mas então Capitu não é real? Madame Bovary não é real? Hamlet? Quixote? Isso é estranho. O ‘real’ são besteiras escritas nas redes sociais”, desabafa.
O inconformismo do crítico acompanha as transformações contemporâneas, em que ele duvida, e, ao mesmo tempo, serve-se da arte. “Acho que foi (Jorge Luis) Borges quem disse que a arte existe para criar felicidade. Isso acontece quando você lê um grande livro, vê um grande filme. Eu me contento com bem menos, espero ao menos divertir quem tiver a imprudência de comprar meu livro. Certamente arte nenhuma eu vejo que possa nos salvar. E, no mais, salvar do quê? O mundo é sempre surpreendente, para o melhor e para o pior. Quem poderia imaginar que o mundo, depois de Nietzsche, de Freud, viesse a ser dominado pela fé? Pela Bíblia! De repente a gente está na rua e vem um cara te esfregar uma bíblia e dizer que aquilo é a palavra de Deus. Que Deus? Deus é uma hipótese, alguém disse”, arremata.