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Maior da América Latina, Festival Internacional de Quadrinhos de BH recebe mais de 400 convidados

Em sua 12ª edição, evento reflete as possibilidades da linguagem com oficinas, exposições e debates através do tema “Onde cabem os quadrinhos?”

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 22 de maio de 2024 | 14:23
 
 
 

Munido de um microfone, um sujeito parrudo, de feição alucinada, convoca sua legião de patriotas a lutarem contra os subversivos, diante de uma claque de rostos inexpressivos e embotados, retratada com densos buracos negros no lugar dos olhos, que aplaude furiosamente. A tirinha compõe uma das 368 páginas da história em quadrinhos “Chumbo”, do franco-brasileiro Matthias Lehmann, um dentre os 400 artistas que participam da 12ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos, o maior da América Latina, em cartaz desta quarta (22) até o dia 26 de maio, na capital mineira. 

O livro de Lehmann compreende a acidentada trajetória política do Brasil, da década de 1930 aos anos 2000, com foco no período militar que perdurou de 1964 a 1985, o que justifica sua presença na mesa de debates “Ditadura nunca mais! Quadrinhos e os 60 anos do golpe civil-militar”, neste sábado (25). “Para mim, era importante falar dessa parte da história, que, de certo modo, foi contradita durante o governo bolsonarista, que incentivou uma visão revisionista do golpe militar e da ditadura”, argumenta Lehmann.   

Filho de mãe brasileira e sobrinho de Roberto Drummond, autor de “Hilda Furacão” que inspira um dos personagens da narrativa, a trama é ambientada em Belo Horizonte, numa “ficção livremente baseada na realidade”, em que “a história íntima e familiar” do quadrinista coincide com aquela com “h maiúsculo”. Habituado a conferir o FIQ como visitante, Lehmann não esconde a felicidade de voltar ao festival como convidado. “Depois de Paris, BH é a minha segunda cidade. O quadrinho está se abrindo muito, com grande interesse do público, e quero participar dessa evolução”, sustenta o artista.

“Onde cabem os quadrinhos?”

É nesse sentido que a quadrinista baiana e curadora do festival Amma pensou, em parceria com o psicólogo e pesquisador Lucas Ed., a provocativa temática deste ano: “Onde cabem os quadrinhos?”. Partindo da “folha em branco a ser preenchida”, eles carregaram a questão das “representações espaciais para as sociais”. “As possibilidades são tantas que temos dificuldade de conceituar, em razão da gama de potencialidades para diferentes públicos, formatos, suportes, sempre em diálogo com outras linguagens, como, por exemplo, o cinema. As pessoas ainda questionam se o quadrinho é literatura”, observa Amma, que não foge de responder a essa controvérsia.

“Entendo que não é literatura, porque é uma linguagem autônoma, com sua própria especificidade, como o cinema, o teatro. O quadrinho tem características que vão além da literatura. É importante compreender que existe um lugar para o quadrinho que não disputa com nenhuma outra linguagem. É mais um auxiliar para o pensamento crítico e a fruição”, defende Amma. Ela admite que, ao longo do processo histórico, “o quadrinho foi considerado mau exemplo e até censurado no Brasil”. “Diziam que as histórias de super-heróis atrapalhavam o desenvolvimento da criança”, recorda Amma.

Pioneiro nas histórias em quadrinhos tupiniquins, Ziraldo (1932-2024), um dos homenageados da atual edição, provou que os detratores estavam errados. Com coleções como “O Menino Maluquinho” e “Turma do Pererê”, ele atiçou o interesse pela leitura em toda uma geração. Em 1960, com “Os Zeróis”, tirou sarro dos super-heróis norte-americanos, demonstrando que o humor era mais eficaz que a mordaça. Além de Ziraldo, o FIQ saúda a memória de Carol Cospe Fogo, Paulo Caruso, Lobo Borges, Roberto Negreiros, Ykenga e Rubens Francisco Lucchetti, e presta reverência em vida aos premiados quadrinistas Alves, natural de Santa Luzia, e Ana Koehler, de Porto Alegre, com a exposição “Do Beco ao Cerrado”, uma das mais aguardadas do festival.

Leque de opções 

Secretária municipal de Cultura, Eliane Parreiras destaca o caráter “lúdico e de crônica contemporânea” dos quadrinhos, e exalta a amplitude da programação do FIQ, que abarca oficinas, debates, exibições de filmes, duelos de HQs, sessões de autógrafos e feiras de quadrinhos, recebendo nomes internacionais do segmento, de países como Itália, Noruega, Espanha, Uruguai e Reino Unido, que se unem a representantes de todas as regiões do Brasil. “Lógico que esse momento de celebração e encontro com o público é uma espécie de ápice, mas temos tentado, com todos os festivais, trabalhar a lógica de processo, com ações formativas e continuadas, para mobilizar tanto a produção quanto a formação desse público potencial”, diz Eliane.

A gratuidade é outro atrativo inegociável da empreitada. “Várias gerações de artistas e leitores se formaram no FIQ. Não temos dúvidas de que a entrada franca tem um impacto grande na democratização ao acesso, que queremos ampliar, garantindo uma participação cada vez mais efetiva das pessoas”, pontua Eliane, que cita o vale-livro para 3 mil alunos de escolas públicas municipais como uma das iniciativas para impulsionar “a autonomia intelectual e o conhecimento de diversas linguagens” propiciados pelos quadrinhos. Mesmo frente aos estímulos das redes sociais e de uma realidade cada vez mais mediada por telas, Eliane acredita que “as pessoas seguem ávidas pelo contato com outros fãs e artistas, pelas trocas que ocorrem nos encontros”.

Amma enaltece a diversidade dessa produção contemporânea, que migra da biblioteca para a internet, acompanhando movimentos feministas, LGBTQIAP+, indígenas e de pessoas com deficiência. “Temos quadrinistas criando ficção, reportagem, biografias de mulheres históricas, falando sobre o cotidiano, pensando sobre a política no país, misturando com música, brincando com animação, ou seja, todo um leque de opções. O Brasil é enorme e não damos conta de prestigiar nem metade dessa efervescência cultural, mas procuramos dar uma pincelada”, afirma. Matthias Lehmann quer seguir contando histórias com “o idioma” que ele aprendeu na infância, e, aqui, ele não se refere ao português nem ao francês, mas ao quadrinho em si. “Quero inventar novos jeitos de trabalhar com essa estética que chama a intuição do leitor”, conclui Lehmann. 

Serviço.

O quê. 12ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos

Quando. Desta quarta (22) a 22 de maio, de quarta a sexta, das 8h às 20h; sábado, de 9h às 21h; e domingo, de 9h às 19h

Onde. Minascentro (rua Guajajaras, 1.022)

Quanto. Gratuito 

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