De mulher escravizada a uma importante dama da sociedade do Arraial do Tijuco, como era conhecida a atual Diamantina na segunda metade dos anos de 1700, Francisca da Silva de Oliveira, a Chica da Silva, é uma dessas personagens que, apesar de histórica, tornam-se folclóricas. Os mitos em torno do seu nome, aliás, são numerosos.
Como aponta um artigo da professora de história Juliana Bezerra, no site de educativo “Toda Matéria”, no século XIX, após sua história sobreviver por meio de contações de casos, via tradição oral, ela foi representada como uma mulher feia e cruel, capaz de, por ciúmes, mandar matar aquelas que se aproximavam de seu marido, o rico contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, que a alforriou e com quem teve treze filhos. Já nos anos de 1930, ela ressurge como uma mulher bela, que, na década de 1960, torna-se símbolo da superação da escravidão. Características que são potencializadas no filme de Cacá Diegues, de 1976, com Zezé Motta como a protagonista, e, depois, na novela homônima à personagem, exibida pela TV Manchete, já na década de 1990, com Taís Araújo no papel principal. Nas duas produções, Chica da Silva aparece sedutora enquanto representa a vitória do oprimido sobre o opressor.
Agora, um novo documentário sobre a personagem, uma produção do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) lançada na terça-feira (25), busca despojá-la desse lugar folclórico, apresentando-a como a mulher que ela de fato foi. Intitulada “Chica da Silva – A Descoberta do Testamento”, a produção tem como base documentos históricos que atestam a existência de Chica da Silva, que estão salvaguardados pelo tribunal.
É o caso, por exemplo, da carta de alforria, que chegou à Memória do Judiciário Mineiro (Mejud) em 1999, quando foi restaurada e encadernada, já tendo sido exposta ao público algumas vezes. A carta foi localizada pela biógrafa de Chica da Silva, a historiadora Júnia Furtado, na Comarca do Serro.
Além disso, como o título da obra sugere, outro importante documento usado no filme é o testamento deixado pela personagem, que nunca foi apresentado publicamente. O material, aliás, ainda não pôde passar por processo de restauro por se encontrar em condição de extrema fragilidade.
Para recuperar o documento histórico, o TJMG está em processo de aquisição de um equipamento específico, como explica o desembargador Osvaldo Oliveira Araújo Firmo, superintendente do órgão de memória do judiciário mineiro.
“Essa máquina, uma obturadora, fará o preenchimento das áreas faltantes no documento, permitindo uma adequada manipulação dele para resgate das informações históricas em sua totalidade. No país, existem oito equipamentos desse tipo, um deles em Minas Gerais, mas, que, no momento, encontra-se inoperante”, informa, acrescentando que o tribunal teve acesso ao testamento em 2009, após ter sido localizado por um tabelião na Comarca de Serro. A partir de então, o documento passou a ser armazenado em local adequado para evitar sua degradação.
“Após o restauro, o objetivo do TJMG é que o testamento fique disponível para exposição”, indica o desembargador. A ideia é que, além da preservação de um documento histórico, que detalha a vida desta personagem mineira, a divulgação também deve permitir que sejam compartilhadas informações que favorecem a compreensão do período histórico, dos costumes da época e da presença do judiciário na vida rotineira dos cidadãos.
Filme ouviu de estudiosos a descendentes
Nos 51 minutos do documentário “Chica da Silva – A Descoberta do Testamento”, a produção investe na apresentação de um perfil ainda pouco conhecido de Chica da Silva, abordando as origens dela como pessoa escravizada, no século XVIII, até a ascensão social, a partir da verdadeira história de amor com o contratador de diamantes, João Fernandes de Oliveira, considerado um dos homens mais ricos e poderosos do império português naquele período.
“Além dos documentos históricos, como a carta de alforria e o próprio testamento, alguns depoimentos – inclusive de descendentes – ajudam a desmistificar acontecimentos, características e traços de personalidade atribuídos a ela ainda que não condizentes com sua trajetória”, detalha Eudes Junior, coordenador de rádio, TV e núcleo de produção audiovisual do TJMG.
“Por meio da costura dos depoimentos – foram ouvidos historiadores; a biógrafa de Chica da Silva, Júnia Furtado; descendentes; e profissionais de museus e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) –, o documentário mostra quem foi Chica da Silva, os diferentes momentos da vida dela, o que fez e como viveu em cada cidade por onde passou, bem como o contexto da sociedade e do país naquela época”, prossegue, situando que imagens das cidades mineiras que fizeram parte da vida de Chica da Silva – Diamantina, Serro, Milho Verde e Santa Luzia – ilustram o documentário e as reportagens para contar a história por trás da personagem.
História vai virar ópera em 2026
Além do novo documentário, a história de Chica da Silva também está sendo revisitada em um novo projeto operístico da Fundação Clóvis Salgado (FCS), que vem trabalhando com montagens originais nos últimos anos, como “Aleijadinho”, de 2022, com estreia na Igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto; “Matraga”, de 2023, na Gruta de Maquiné, em Cordisburgo, terra de João Guimarães Rosa; e “Devoção”, de 2024, montada no Santuário do Bom Jesus do Matozinhos, em Congonhas.
“Todos os espetáculos foram apresentados, primeiro, no lugar onde a história aconteceu, que, via de regra, é um cartão postal de Minas. Uma semana depois, vieram para o Palácio das Artes, que é o lugar mais adequado para receber uma ópera, com fosso para orquestra, espaço para coral, enfim, uma estrutura completa”, ressaltou, Sérgio Rodrigo Reis, presidente da FCS, em entrevista a O TEMPO, no ano passado. Na conversa, ele garantiu que a mesma lógica deve ser aplicada à Xica da Silva: “A ideia é fazer, primeiro, em Diamantina e, depois, em BH”.
A música original do novo projeto está sendo produzida pelo compositor Marcus Viana. “Ele trabalha com esse tema há mais de 30 anos, antes mesmo de fazer a trilha para a novela da Manchete”, comenta Reis, inteirando que o libreto é baseado no livro “Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito”, da historiadora Júnia Ferreira Furtado, que também participa do documentário lançado pelo TJMG. “Ela fez um trabalho criterioso, que desvendou essa personagem, trazendo minúcias de sua história e afastando-a daquela figura folclórica apresentada em outras produções”, pontua.