“Crianças abandonadas nos semáforos, idosos arrastando carroças e revirando lixo em busca de um pedaço apodrecido de pizza, ou deitados nas calçadas sem ter para onde ir, loucos e bêbados querendo fugir da realidade daquele mundo de derrota e desgraça”. Publicado na Revista E, vinculada ao Sesc São Paulo, em abril de 2024, o trecho acima pertence ao conto “A Sala 33”, de Wesley Barbosa.
Nascido em Itapecerica da Serra, na região metropolitana de São Paulo, o jovem autor de 35 anos esteve na última edição da Flipoços (Festival Literário Internacional de Poços de Caldas), quando sofreu um episódio de racismo. Participando com o estande “Neomarginais” junto a outros escritores de livros independentes, ele recebeu o convite da escritora Camila Panizzi Luz para subir ao palco durante a mesa intitulada “Raízes e Asas: Literatura e Artes Sem Fronteiras – O Encontro de Mãe e Filha na Terra Natal”, que ela comandava ao lado da mãe Ivana Panizzi.
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Ao questionar Wesley sobre o termo “neomarginal”, Camila disparou: “Como que faz para ser neomarginal? Eu quero ser uma neomarginal, gente. Olha que tudo! Camila Luz, neomarginal. Nunca fui presa”. Visivelmente constrangido, Wesley tentou continuar com a explanação de seu livro, mas seguiu recebendo o deboche da anfitriã. As imagens rapidamente tomaram as redes sociais e as reações contrárias à postura de Camila levaram a organização do evento a cancelar a sua participação no festival e retirar os livros da escritora de circulação.
Filha do embaixador da Bolívia, Francisco Carlos Soares Luz, Camila tornou privado o acesso à sua conta antes pública no Instagram, e sua equipe enviou uma nota à afiliada da Rede Globo em Poços de Caldas, na qual alega que ela teria sido vítima de “acusações públicas que alegam condutas racistas com base em recortes de mensagens privadas e fora de contexto”. “É importante ressaltar que Camila tem plena consciência de seus privilégios e já demonstrou inúmeras vezes sua disposição em abrir espaço para outras vozes – inclusive, cedendo seu próprio protagonismo em eventos, feiras e espaços profissionais, em respeito e reconhecimento à desigualdade histórica que permeia nossa sociedade”.
Com pouco mais de 5 mil seguidores nas redes sociais, onde se apresenta como internacionalista, marketeira, exploradora e autora, natural de Poços de Caldas e residente em Portugal, Camila lançava na Flipoços dois livros sobre “liderança feminina e mindset”. “Também nunca fui preso. A estrutura do racismo pode ser sutil, mas é sempre violenta. No Brasil, é algo bastante escancarado. O que a moça disse naquele momento apenas escancarou como o mercado editorial funciona. Ela não estava ali por mérito de ser uma grande escritora, intelectual ou pensadora, mas porque a mãe dela era amiga da curadora do evento”, desabafa Wesley, que recebeu “a solidariedade de pessoas anônimas e famosas”, como o cantor Xande de Pilares e Renato Freitas, deputado estadual pelo PT do Paraná.
“O mercado editorial também destila esse racismo em suas estruturas, quando não temos um curador negro, e, de cada dez autores, somente dois são negros. Isso não é uma estimativa, é apenas para ilustrar o contexto. Tem sempre muito mais gente branca do que preta, embora o Brasil seja um país totalmente plural”, observa Wesley, que lamenta o fato de episódios de racismo como o ocorrido na Flipoços não serem “nenhuma novidade” para ele.
Barraco
Em sua conturbada participação na Flipoços, Wesley repetiu uma frase que se tornou mote de sua relação com a literatura, ao apresentar o livro “Viela Ensanguentada”, publicado em 2022, como “um colete à prova de balas”. Após vender mais de mil exemplares em menos de um mês, o romance foi traduzido para o francês pela editora BR Marginália, sob o nome “Rouge Favela”, com lançamento em Paris no Expo-favela programado para os dias 4 e 5 de julho. Para conseguir comparecer, Wesley abriu uma vaquinha virtual na internet a fim de arcar com os custos da viagem. Ele conta que, com exceção de “Pode me Chamar de Fernando”, de 2023, que saiu pela Numa Editora, seus livros não estão distribuídos nas livrarias.
“De certa forma, eu sou a minha própria livraria. Quando vou para as feiras literárias, ou quando as pessoas compram meu livro pela internet, eu despacho para todo o Brasil”, explica ele, que tem o cuidado de dedicar e autografar cada exemplar. “A princípio, eu vendia pelas ruas, encontrando as pessoas, hoje não faço mais tanto isso, mas continuo indo às feiras, que é onde encontro os leitores”, complementa ele, que, recentemente, criou uma loja virtual para os leitores interessados em suas obras, cujo link fica disponível na biografia de seu perfil no Instagram. Vendendo de porta em porta e distribuindo suas palavras para transeuntes, Wesley, que trabalhou como servente de pedreiro, atendente de supermercado, entregador de jornal e vendedor ambulante, conseguiu recursos para fundar a sua própria editora, em 2023.
“A Barraco Editorial nasceu da necessidade de conseguir me manter no mercado de forma mais efetiva, porque eu sempre frequentei o público leitor de maneira direta, e gosto disso. Só que um dia entendi que precisava de um CNPJ para continuar participando das feiras literárias, e eu não tinha uma grande editora que me publicasse”, informa. Lembrando-se do tempo em que ficava horas lendo no barraco onde morou com sua mãe, uma faxineira que o criou sozinho, ele encontrou o batismo ideal para sua empreitada.
“Não é um nome tão bonitinho como o de outras editoras, mas é o que me impulsionou a criar e me autopublicar”, salienta Wesley. Inicialmente focada em escritores periféricos, a iniciativa acabou seduzindo o ator Pedro Cardoso (famoso pelo personagem Agostinho de “A Grande Família”), que, ao lado de Aquiles Marchel Argolo, publicou pela Barraco a coletânea “Dias sem Glória”. “A literatura nos uniu e somos pessoas ideologicamente parecidas. O Pedro Cardoso traz uma visibilidade que pode abrir mais espaço para a editora, porque a gente sabe como o mercado funciona”, reforça Wesley, que, pela Barraco, também já publicou livros de Marcelo Ariel, Lena Roque e Cintia Santos.
À margem
Há exatamente uma década, em 2015, a editora independente Selo Povo, do rapper e escritor Ferréz, promovedor de ações culturais no Capão Redondo, em São Paulo, publicou o primeiro livro de Wesley. Com a tiragem de 200 exemplares de “O Diabo na Mesa dos Fundos”, que se esgotou rapidamente, Wesley aprendeu como funcionava “a impressão, a edição e a distribuição de um livro”, e começou ele mesmo a bancar “diagramação, capa, revisão e etc” de suas produções. A associação com a editora de Ferréz o levou a ser imediatamente identificado pelo público e pela crítica como “um autor de periferia, que as pessoas denominam como literatura marginal”.
Ele cita autores de sua predileção como João Antônio, Lima Barreto, Roberto Piva e Carolina Maria de Jesus, que, “de alguma maneira sempre foram vistos como marginalizados tanto pela sociedade quanto pelo que abordavam nas obras”. “Não sou um grande pesquisador e não gosto de me prender a nomenclaturas. O que reconheço é que estou na margem pelo fato de não estar em uma grande editora, de não falar desse lugar de classe média alta, de uma literatura, digamos assim, de gabinete”, provoca. “A minha literatura respira as ruas, a questão das pessoas nas favelas. Esses são os cenários dos meus livros, e a literatura marginal, para mim, é uma lágrima que vai desembocar num rio de esperança, enquanto narrador da minha própria história”.
O relacionamento do escritor com a literatura começou quando ele compreendeu que “era pobre demais”. “Precisava me municiar de palavras, dos livros, para não ser mais uma pessoa encontrada baleada numa viela”. Na adolescência, ao esbarrar acidentalmente com uma biblioteca, enquanto matava a aula de matemática, Wesley decidiu ler “tudo que encontrava pela frente”, de Jorge Amado a Dostoievski, passando por Clarice Lispector, Balzac e Rimbaud. “Nos livros de Balzac, ele aborda os marginalizados pela sociedade parisiense, os escritores que não se encaixavam com a época”, aponta ele, que ainda destaca os contemporâneos Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”, e Xico Sá.
Geralmente impulsionado por uma ideia que o transtorna, Wesley revela que, nesses momentos, passa “inúmeros dias totalmente dedicado a escrever”. “O que me inspira são as minhas indignações, os livros que eu leio, as coisas que eu vejo, as lembranças da infância. As marcas da infância de alguma forma vão moldando o homem e persistem como feridas que não se fecham. Escrever é uma maneira de ir curando um pouco essas feridas”, reflete ele, para quem o grande desafio enfrentado tanto por ele quanto por cânones como Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e Machado de Assis consiste no fato de “ser negro e escritor em um país onde a cor da pele importa mais do que o talento, além da falta de acesso a recursos”. “Sem ironias, só soube que o Machado de Assis era ‘branco’ depois que atravessei a adolescência”, arremata.