Ao ouvir uma nova palavra, dona Terezinha mirava o infinito com olhar vago, “tateando o insondável, as subjetividades, as memórias”, enquanto sua criança interior estabelecia conexões que passavam ao largo da formalidade. Ela imaginava, e, depois, perguntava, com o argumento: “Você que estuda muito, o que significa tal palavra?”, direcionada ao filho.

“Independente da minha resposta, a imaginação dela já tinha criado muitos significados. Ainda que o dicionário e os meus anos de estudo dissessem o ‘verdadeiro’ significado da palavra em questão, e, talvez, algo diferente do que os sentidos dela contaram”, relembra Cláudio Henrique, que elege a mãe como sua “primeira referência e autora”. Apresentador do programa “Conversações”, dedicado à literatura na Rede Minas, Cláudio ainda carrega o amor que a mãe sentia pela palavra.

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Pesquisador de culturas indígenas e colonialidades, o mundo acadêmico o levou a Machado de Assis, Conceição Evaristo, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Bell Hooks, José Luandino Vieira, Ailton Krenak, dentre outros. O recente episódio de racismo contra o escritor Wesley Barbosa na Flipoços revela, na opinião de Cláudio, “o quanto falta avançarmos nas discussões sobre racismo estrutural e o quanto as famílias, sobretudo as brancas, o Estado e as mídias, principalmente as hegemônicas, estão em débito nos quesitos abordagens e formação educacional antirracistas”.

Ele cobra a implementação efetiva da lei sancionada pelo presidente Lula, em 2003, que prevê a inclusão da História e Cultura Afro-brasileira e Africana em nossos currículos escolares. “Não sei se o episódio em questão afeta negativamente ‘a literatura’, porque ela tem e sempre terá um viés educativo, disruptivo, o papel de contribuir para reflexão e despertar consciência crítica nos leitores”, vaticina Cláudio, para quem “a literatura, ainda que seja ficcional, bebe nos acontecimentos que se passam na sociedade ou atravessam os escritores”.

“Penso no didatismo do triste gesto racista ocorrido em Poços de Caldas e no quanto as obras literárias, sendo de literatura negra ou não, têm a acrescentar ao debate, no repertório do público leitor e na produção de novas obras que ajudem a combater a desinformação e o racismo”, observa. É esse o viés da escritora Lília Martins. Mineira de Belo Horizonte, ela assumiu a palavra literária a partir de uma convicção. “Nós, pessoas negras, temos que contar nossas histórias. Passamos muito tempo invisibilizados. A luta é constante. O que me inspira a escrever é saber que, do outro lado, tem muita gente ansiosa para se ver representada”, afirma.

Descobrindo o mundo

Formada em Biblioteconomia e dedicada à literatura infanto-juvenil, Lília lançou, em 2024, numa parceria com Andreza Félix, o livro “Entre Nós”. “Faço uma literatura para crianças que transforma a vivência negra num lugar de alegria. Minha literatura fala de uma infância feliz, de crianças que vivem o cotidiano, de episódios comuns, porque a gente percebe que essas crianças negras e as crianças não negras precisam muito viver experiências corriqueiras”, salienta Andreza. 

Também pedagoga e rodeada pelos pequenos o tempo todo, ela constata que, “mesmo com a tecnologia avançando cada vez mais, as crianças têm a necessidade de descobrir o mundo”. Andreza admite que “a marca do racismo é tão presente na sociedade brasileira” que recorrências como a que afetou Wesley Barbosa produzem o efeito de cansaço e tristeza na comunidade.

“Apesar de ser uma escritora negra que faz uma literatura das infâncias afrocentradas, eu não tenho uma vivência de periferia. Sou uma pessoa negra que teve uma vida bem de classe média brasileira, o que não me impediu de ter experiências de agressões e exclusões sociais em função da cor da minha pele”, lamenta Andreza. Esse contexto, segundo ela, demanda um esforço contínuo “para mostrar que os temas são válidos, as conversas são necessárias e as coisas acontecem por um motivo”. A escritora Cintia Santos define como “uma ferida aberta que escancara o racismo no Brasil” o ocorrido com Wesley Barbosa no interior de Minas Gerais. 

Autora de “Ori: Encontros Mágicos”, publicado pela Barraco Editorial, ela diz que se sentiu “profundamente impactada”. “Sei que o que está em jogo não é apenas um evento isolado, mas uma tentativa constante de deslegitimar a produção literária fora do cânone, principalmente a que vem das periferias. O incômodo com a palavra ‘marginal’ revela o quanto ainda associam nossa presença à criminalidade, e não à criação, à arte, à inteligência. Esse caso expôs o incômodo que ainda existe quando autores negros e periféricos ocupam espaços de prestígio”, desabafa. 

Perspectiva de embate

Para o pesquisador, apresentador e professor Cláudio Henrique, o termo “neomarginal” – que detonou a polêmica em torno da participação de Wesley Barbosa na Flipoços, quando ele foi alvo do racismo da escritora Camila Panizzi Luz – “se relaciona com a escrita de negros e brancos, moradores das periferias ou não, com o tempo presente sem esquecer o passado”. 

“Neomarginal é uma literatura em expansão pela própria natureza, pelos tensionamentos e afetações mútuas em função da sucessão de acontecimentos sociais, culturais, políticos e econômicos, que são a matéria-prima para as respectivas escritas. Romper com o cânone literário tradicional, quebrar tabus, propor novas estéticas, abordar temas polêmicos, mazelas políticas e sociais, buscar novas formas de produção e distribuição são algumas características tanto da literatura marginal da década de 1970 quanto da literatura neomarginal do século XXI. São literaturas do campo da contracultura na forma e conteúdo”, explica Cláudio. 

Ele reforça que é importante ter em conta que a ideia de a literatura neomarginal ser uma novidade “vinda da periferia e produzida, exclusivamente, por pessoas negras é reducionista e equivocada”. E pega de empréstimo uma fala do poeta Vitor Miranda, integrante do Movimento Neomarginal, para sustentar seu ponto, segundo quem, “muitos dos periféricos estão incluídos na dinâmica do mercado editorial”. 

Trupe

“Considerando que a literatura e o Movimento Neomarginal não estão reduzidos a pessoas negras, embora as mazelas sociais vitimizem, preponderantemente, essa população”, Cláudio destaca representantes como Ikaro Maxx, da Paraíba; Ricardo Pozzo, de Curitiba; e Joana Rizério, da Bahia; além do paulistano Ferréz, do pernambucano Marcelino Freire, e dos mineiros Simone Teodoro, Jovino Machado e Bim Oyoko, que, a despeito de não estarem oficialmente atrelados ao movimento, compartilham “características da escrita” e foram influenciados tanto pela Geração Mimeógrafo de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Torquato Neto quanto pelos beatniks norte-americanos Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs. 

Embora não se considere exatamente uma praticante da chamada literatura neomarginal, Andreza Félix sustenta que “quando um autor pertence a uma minoria representativa, sempre vai dialogar com a margem”. “Apesar de sermos uma população bastante grande, ficamos à margem porque não fomos incluídos educacionalmente, socialmente, culturalmente e financeiramente”. 

Lília Martins aponta que a reação contra Wesley Barbosa demonstrou “a vontade de diminuir a literatura neomarginal, utilizando da ironia de uma forma muito agressiva”. Por essas e outras, Cintia Santos não tem dúvidas de que “ser uma escritora negra e periférica hoje é, antes de tudo, um ato de coragem”. “É escrever contra o apagamento, contra o racismo literário e acadêmico, é batalhar por espaço, mas também abrir caminhos”, arremata.