Foi durante a leitura dos poemas épicos “Ilíada” e “Odisseia”, atribuídos a Homero, que Caísa Tibúrcio teve a epifania. “Comecei a ver uma relação com a forma dramática, muitas vezes exagerada, trazendo um aspecto heróico e até mitológico, típico dos contos populares, e que estava presente nas histórias que eu ouvia da minha família”, confirma.

A percepção reacendeu o perene desejo de “trabalhar a partir do imaginário e da musicalidade do interior do Brasil”. Assim nasceu “Enluarada – Uma Epopeia Sertaneja”, monólogo que a atriz apresenta desta sexta (29) a domingo (31) em Belo Horizonte, como parte do projeto “SerTão a Gosto”, que aporta no Galpão Cine Horto

No palco, música, artes cênicas e gastronomia entram em uma fina sintonia, a partir da peculiar proposta da Casulo Teatro, oriunda de Brasília, assim como Caísa. “Eu sou uma das primeiras gerações que cresceu na cidade”, conta ela, cuja família por parte de pai e de mãe veio de Patos de Minas. Desde pequena, ela ouvia histórias antigas compartilhadas pelos familiares.

Logo, a partir de uma pesquisa cênica que desembocou em entrevistas com tias, primas e outras integrantes da família, Caísa começou a acessar histórias que se mantinham em segredo, e, sobretudo, “risadas e gargalhadas de mulheres que não via sorrir muito”. “Isso foi muito impactante. Resolvi misturar essas histórias com a ficção e com referências da cultura popular, do violeiro que tem pacto com o diabo, das minas de ouro que levavam a disputas sanguinárias”. 

Iluminação

Fiando-se na memória, ela procurou “um tom que se assemelhasse à luminosidade de uma vela enquanto se escuta uma história”. “Eu busco reproduzir isso na forma como eu conto as histórias que chegavam para mim”. Um bom exemplo é a maneira poética, talvez decorrente de um ato falho, com que Caísa se refere a um dos achados do processo.

Os textos de uma tia-avó que exalavam “introspecção e melancolia” se configuraram como verdadeiro tesouro. “Ouvindo esse diário, de 1940, me senti ainda mais próxima dessa história”, revela, sem conseguir disfarçar como a sonoridade das palavras ali presentes determinaram a sua experiência. 

Para narrar a vida de Maroca, apaixonada pelo vaqueiro Heitor, a música cumpre papel decisivo. No preparo de uma galinhada a olhos vistos, há tempo de sobra para que canções autorais de Caísa em parcerias com o pai, a irmã Milena Tibúrcio e o companheiro Fernando César tomem a cena, reforçando esses laços filiais.

O repertório ainda abre espaço para sucessos de Zé Mulato & Cassiano, Chiquinha Gonzaga e a irresistível “Moreninha”, pertencente ao domínio público. Durante o espetáculo, além dos utensílios de cozinha, a atriz também empunha seu acordeon. “A musicalidade sertaneja é uma coisa que sempre me emocionou”, sublinha Caísa. 

Afetiva

É nesse sentido do afeto que igualmente se estabelece a relação com a cozinha. “A cultura mineira tem muito isso. E, no meu ambiente, a cozinha sempre foi o lugar de conversa, de troca. A gente não se senta à mesa só para comer, estamos ali para fraternizar. A cozinha é um espaço de celebração, está vinculada a momentos festivos. Para mim é esse lugar de potência criativa”, enaltece a artista, sem ignorar que, ao longo da história, o espaço muitas vezes “serviu como lugar de opressão, principalmente às mulheres trabalhadoras”.

No entanto, Caísa deixa claro que a perspectiva da peça “é a deste lugar de confraternização, de uma típica cozinha de fazenda, que chega às pessoas afetivamente”. “É um espetáculo que tem mais de cinco anos, e sinto que ele chega a muita gente que não estava muito habituada ao teatro, mas que se interessa por aquele tipo de história interiorana, pela música, enfim, sinto que estamos fazendo teatro para quem não é convertido”, diverte-se.

Na opinião da atriz, a montagem tem como mérito justamente “iluminar um Brasil não muito mostrado, que foi estereotipado ao longo da história”. “Procuro não imitar o sotaque, não cair no grotesco. Quero mostrar essa riqueza cultural que temos, comunicar a força de uma tradição, das histórias antigas, com a minha visão contemporânea. Percebo uma tendência muito discursiva no teatro atualmente, e tenho gosto por valorizar o poder da história, que é atemporal”, arremata. 

Serviço

O quê. Projeto “SerTão a Gosto” com apresentação do espetáculo “Enluarada – Uma Epopeia Sertaneja”

Quando. Sexta (29) e sábado (30), às 20h; Domingo (31), às 19h

Onde. Galpão Cine Horto (rua Pitangui, 3.613, Horto)

Quanto. Gratuito, com retirada de ingressos 1 hora antes na bilheteria do teatro