Luiza Brina pinça de “Andar com Fé” uma frase que a identifica: “a fé está na maré, na cobra coral…”. De pronto nos acorre à mente outro lapidar aforismo de Gilberto Gil: “minha ideologia é o nascer de cada dia/ e minha religião é a luz na escuridão”. Todo esse universo dialoga com “Prece”, álbum de 2024 que a cantora e compositora mineira apresenta nesta quinta (20) em Belo Horizonte, em um aguardado concerto da série “Artes e Cordas” com a Orquestra Sesiminas, sob regência de Felipe Magalhães.

“Não sigo uma religião específica, mas acredito profundamente na vida e nos mistérios que ela carrega. É dela que vem a minha fé, que se manifesta no dia a dia, na natureza e nos encontros”, sublinha Luiza. Ela relembra que suas “canções-orações nasceram de uma crise de pânico” vivenciada há alguns anos. “Diante da necessidade de voltar a crer na vida, comecei a compor essas canções. A música, para mim, então, é o espaço onde essa fé se expressa, talvez seja mesmo a minha religião”, arrisca.

 

De volta a Gil, Luiza afirma se identificar “com essa ideia de uma fé que não está em um templo, mas espalhada pelo mundo, na água que corre, em tudo que se move, no que resiste. É nesse lugar que transformo minha relação com a vida em música”. Para gravar “Prece”, ela arregimentou uma orquestra formada por 18 instrumentistas mulheres, representando nada menos do que sete nacionalidades. 

“Foi a realização de um sonho. Admiro cada uma dessas musicistas e senti que o disco carregava também a força desse encontro. Tudo soava como uma grande celebração”, define Luiza, que sentiu como “uma experiência emocionante” escrever os arranjos das onze faixas do álbum. “Além disso, o ambiente de estúdio, cercado por mulheres, foi especialmente acolhedor. Existe uma escuta diferente quando nos reunimos dessa forma, uma generosidade que cria espaço para cada uma”, complementa.

Encontros e reencontros

O trabalho levou Luiza a reencontrar-se com as próprias origens. Em postagem nas redes sociais, a artista compartilhou uma foto tocando violoncelo e admitiu que “queria estudar todos os instrumentos, aprender um pouquinho sobre cada um”. “Minha relação com a música orquestral vem tanto da formação quanto da curiosidade artística”, confirma Luiza. Formada em Composição em 2012, curso que dividiu entre a UFMG, em BH, e a UniRio, no Rio de Janeiro, ela ratifica esse encantamento precoce, “não só com a música erudita, mas também com a popular”. “Sempre procurei mesclar essas linguagens”. 

Luiza referenda que “é raro, sendo mulher e brasileira, ter acesso a uma orquestra fora do ambiente acadêmico”. “No ‘Prece’ foi a primeira vez que vivi essa experiência de forma plena”. Nesse sentido, o encontro com a Orquestra Sesiminas soou natural, diante de concertos recentes da companhia com nomes como Fernanda Takai, Dora Morelenbaum e Jaques Morelenbaum, “sempre explorando repertórios plurais nesse diálogo com a música popular”, avaliza ela, na expectativa por sentir a sua música “expandida por essa orquestra”, sem dispensar a presença da própria banda, formada por Lucas Ferrari nos eletrônicos e Yuri Velasco na percussão. 

Essa tônica da comunhão vem do próprio álbum, recheado de participações especiais de diferentes localidades do globo terrestre. Cantora e compositora, a mexicana Silvana Estrada, por exemplo, entoa o idioma português pela primeira vez na carreira em “Oração 2”. “Ela trouxe uma delicadeza que ilumina a canção de um jeito realmente especial”, elogia a anfitriã. Já a cantautora argentina LvRod dá o ar de sua graça em “Oração 16”, a única composta por Luiza em espanhol. “A interpretação dela me emociona muito, porque abre uma nova leitura para a música”, diz. 

Com a paulistana Iara Rennó, Luiza compôs “Oração 19”, enquanto o carioca Thiago Amud colaborou em “Oração à Cobra Grande”, que traz um dueto com Mauricio Tizumba, ícone absoluto da cultura mineira, assim como seu legítimo herdeiro Sérgio Pererê, cuja voz poderosa ressoa na “Oração 13 (coração candongueiro)”. “Tizumba e Pererê são dois mestres que admiro desde a adolescência. Cada participação abriu uma nova janela dentro do disco, criando encontros que eu sozinha talvez não conseguisse alcançar”, agradece Luiza. 

Natureza & tecnologia

O fato de a numeração das orações que comparecem no álbum “Prece” não obedecerem a uma linha cronológica está intimamente conectado ao processo de composição da artista. “Quis reunir algumas das canções-orações que vinha compondo desde 2010, quando comecei essa série. Para o disco, selecionei dez orações entre as cerca de vinte que já compus, algumas antigas e outras inéditas, feitas especialmente para o álbum, muitas delas em parcerias queridas com artistas como Júlia Branco e Vovô Bebê”, enaltece. 

Luiza conta que a escolha de não seguir uma numeração cronológica foi natural. “O disco pedia uma narrativa própria, então a ordem das faixas foi definida pelo fluxo que eu queria criar para quem escutasse”. Essa ideia de fluxo, aliás, a guia pela vida, ainda que possa haver atritos e trancos, como na “complexa relação com as plataformas digitais”.

“É uma relação que se dá dentro do capitalismo. Por um lado, elas são uma das formas mais acessíveis de compartilhar meu trabalho, é por meio delas que muitas pessoas conhecem minhas músicas, e isso tem uma importância, claro. Mas, ao mesmo tempo, é impossível ignorar que essas ferramentas operam dentro de uma lógica de consumo acelerado, vigilância e esgotamento de dados, de corpos, de tempo”, analisa. 

A compositora não esconde o incômodo, pelo contrário. “Minha política de vida tem se voltado cada vez mais para o cuidado com o mundo offline, com os ciclos naturais, com os encontros reais. É nesse lugar que minhas canções nascem, da escuta, do silêncio, da natureza, da convivência. Tento encontrar um equilíbrio possível entre essas duas dimensões, sabendo que não há respostas simples nem soluções fáceis. Às vezes sinto vontade de desaparecer completamente das redes, mas enquanto estou lá, tento que a minha presença seja coerente com o que acredito. Igualmente com a minha música, por enquanto elas seguem nas plataformas de streaming, mas é algo que sempre está em questão, uma reflexão constante pra mim”. 

No horizonte próximo, Luiza tem tido “a alegria de trabalhar cada vez mais como produtora musical”, o que a permite “mergulhar em outros universos e colaborar com artistas” que admira. “Produzi recentemente dois discos muito diferentes entre si, e isso é algo que me entusiasma bastante”, comemora, citando “Ousar Abrir”, de Marina Melo, e “Se Eu Pudesse Eu Beijava Até a Voz”, de Amandona. “São trabalhos com potências e estéticas distintas, e foi muito bonito acompanhar cada um em seu processo”. Atualmente, ela produz o disco de Pedro Finco, músico do ABC Paulista. “Ele é um artista muito jovem, traz uma escuta fresca, cheia de delicadeza e coragem. É um sopro pra mim também”, destaca. 

Para completar, ela participa, ainda este ano, do programa “Experimente”, do Canal Bis, e promete lançar em breve “uma participação em uma das maiores plataformas de vídeo da atualidade, mas ainda não posso revelar qual”, despista. No campo das composições, uma parceria com o conterrâneo Ed Nasque, da qual se orgulha muito, está garantida no próximo álbum do artista, “Abaré”, contemplado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura. “Estou em movimento, aberta às colaborações e aos caminhos que a música vai abrindo”, finaliza Luiza. 

Serviço

O quê. Concerto do álbum “Prece”, com Luiza Brina e Orquestra Sesiminas

Quando. Nesta quinta (7), às 20h30

Onde. Centro Cultural Sesiminas (rua Padre Marinho, 60, Santa Efigênia)

Quanto. De R$25 (meia) a R$50 (inteira) pela plataforma www.sympla.com.br ou na bilheteria