Aline Bei estava acostumada ao passado, onde sua escrita se situava. Até que foi instigada a enxergar o tempo sob um prisma novo e escrever, pela primeira vez, no presente. A provocação aconteceu durante uma oficina em escritas performáticas ministrada pela professora Adriana Maciel. “Ali, algo se modificou para mim e me revelou essas personagens”, conta Aline, resgatando o instante da epifania. A escritora, que participa do “Sempre Um Papo” nesta terça (2), se refere a “Uma Delicada Coleção de Ausências”, seu livro mais recente, que ela lança em BH pela Companhia das Letras. 

“Comecei sem saber qual era a trama, mas me parecia, desde o início, que a ausência da Glória era importante, me direcionava para alguma coisa que não estava certa e que estava acontecendo no livro, alguma coisa que ainda não era clara para mim. Escrevi essa primeira versão inteira no escuro”, detalha Aline. A história se concentra sobre as angústias e descobertas de quatro mulheres da mesma família: a bisavó Felipa; a avó Margarida, que cuida da neta Laura; e Glória, a mãe desaparecida. 

“Fui colocando essas mulheres em relação à ambientação e descrição do espaço, e acho que essa atmosfera foi me dando o tom da escrita. Em dado momento descobri a trama, e aí o trabalho foi reescrever e manchar a história com esse acontecimento subterrâneo, o segredo que só se revela quase ao final e mantém a tensão, a expectativa de algo, que não sabemos bem o quê, mas que vai nos guiando como uma espécie de incômodo, gerando o crescendo da narrativa”, afiança Aline. 

Ausência

Ela pontua que “a história da Glória é contada pela presença das outras e a ausência dela própria”. “É como se uma pudesse contar a história da outra de outro ponto de vista. Comecei a pensar nesse livro e me vieram as quatro personagens de uma vez. Nunca tinha trabalhado com quatro vozes simultâneas, venho da primeira pessoa como centro nervoso claro da narrativa, e, nesse livro, sou mediada pela outra voz do narrador, uma voz observadora, porosa, invadida por pensamentos, imagens, monólogos que inserem um vai e vem na narrativa, conduzindo e sendo conduzida ao mesmo tempo. É um narrador mais cru, sem opinião moral”. 

Evocada e imaginada, Glória incorpora fantasmagoricamente a aflição da espera, como uma metonímia da esperança. “Pode ser por ela ou qualquer outra coisa que transforme aquelas vidas. Mas ela não volta. Essa ausência marcada molda a sua filha Laura, que nunca a conhece, enquanto a avó Margarida realiza um gesto duplo em direção à neta, de quem cuida como uma filha”, entrega a escritora, para quem “trazer esse ritmo para o livro foi importante para o modo como ela ia se desdobrar na folha”. Esse cuidado com a questão gráfica como parte da narrativa segue presente na obra de Aline, embora de outro modo em comparação a “O Peso do Pássaro Morto” (2017) e “Pequena Coreografia do Adeus” (2021), livros que a consagraram para o grande público. 

“De fato, o texto agora está mais povoado de palavras, mas sinto que essa mudança já havia começado com a ‘Pequena’, que se deteve na ocupação da literatura da (personagem) Júlia, que começou a se descobrir como escritora, tem diários e passa a escrever ficção mais à frente, com um texto mais de prosa, onde eu já experimentava frases mais alongadas. Nesse atual livro, estou falando muito de ausência e senti que eu criaria uma tensão maior na folha se desse essa arenosidade ao vazio do que se ele viesse dessa reiteração da ausência”, avalia a escritora paulista. 

Híbrida

Aline afirma que, com “Uma Delicada Coleção de Ausências”, ela encerra uma trilogia e parte para outras paragens. “Há muitas semelhanças entre os livros que compõem essa trilogia, tem todo um universo particular que traz de maneira muito forte a questão da infância tratada de maneira ambígua, sombria, não é aquela infância projetada socialmente e somente alegre, bela, leve. Muita dor e muito trauma acontecem na infância. Os três livros olham para essa perspectiva. Minha gramática íntima veio encontrando meios de se pluralizar a partir da mesma fonte nessa trilogia. A inquietação da minha linguagem, a relação forte com o corpo, as protagonistas, os saltos temporais, o envelhecimento, o convívio familiar, a maternidade não idealizada, está tudo presente”, assinala. 

Com uma escrita poética que busca retirar esse aspecto tanto da forma quanto do conteúdo, Aline conta que, para ela, a mistura de linguagens sempre foi muito natural. “Venho do teatro, gosto de poesia, tenho essa escrita de fronteira com as outras artes. No nosso tempo é comum que aconteça esse hibridismo de gêneros, como um modo de estar inquieto. Puxo para o meu lado de interesse sobre a dramaturgia, a oralidade, a prosa, a criação de personagens”, salienta a entrevistada. Ela, no entanto, opta por uma classificação até certo ponto clássica para seus escritos. 

“Costumo chamar de romances porque sinto que é o gênero que oferece uma amplitude maior para a experimentação, mesmo em relação ao conto e à poesia, que têm uma proposta de coesão e precisão. Mas também não me demoro demais nessas questões, escrevo de forma espontânea, conectada com o movimento de escrita, e como isso vai ser classificado depois importa menos para o meu processo. Para mim, é importante que as experiências na folha de papel estejam vívidas, e nisso empenho todos os meios do meu ateliê, todas as técnicas, intuições e a sensibilidade”, diz Aline. 

Calma 

Para a escritora, “é importante ter consciência do procedimento no objeto artístico”. “O motivo para aquilo estar ali é fundamental. Na internet, o foco é na comunicação veloz e não na língua, na forma da linguagem”, diferencia ela, que tem a poesia concreta como uma de suas principais referências. “Vivemos tempos de velocidade, de acúmulo de informações que atravessam o corpo de todos os artistas e isso obviamente gera um tipo de ritmo, de tom, de investigação”. A despeito dessa constatação, Aline enxerga na literatura, e em todas as artes, um contraponto cada vez mais essencial. 

“A arte nos propõe outro posicionamento do corpo, do pensamento, da sensibilidade, e ganha, justamente, pelo contraste, pelo cansaço da efemeridade que algumas pessoas sentem e buscam outro jeito de lidar com a linguagem. A literatura tem um tempo de digestão que não exige uma resposta imediata, é um tempo estendido que nos chama para uma reflexão complexa sobre os assuntos, em que é preciso ouvir mais antes de já entregar uma reação qualquer”, opina Aline, que, aos 37 anos, não gosta de falar sobre o futuro. “Ele é aquele que precisa ser preservado”, arremata. 

Serviço

O quê. “Sempre Um Papo” com a escritora Aline Bei

Quando. Nesta terça (2), às 19h30

Onde. Teatro da Biblioteca Pública Estadual (Praça da Liberdade, 21)

Quanto. Gratuito