Eram os idos de 1971, em pleno auge do movimento hippie, quando o compositor e violonista Luiz Carlos Sá se juntou aos amigos Zé Rodrix e Gutemberg Guarabyra para uma aventura artística no mínimo inusitada. O trio queria cruzar Neil Young, The Byrds e Gram Parsons com Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro – mais uma pitada de viola sertaneja mineira – para criar uma nova vertente no cenário musical brasileiro: o rock rural.
“A gente cozinhou tudo aquilo numa panela grande e serviu para o público um som próprio, com a nossa cara”, diz Sá, em tom nostálgico, do outro lado da linha, durante entrevista para o Magazine, direto de sua casa, em Lisboa.
Com o plano em mente, o grupo produziu, em menos de dois anos, uma miscelânea sonora de respeito e um sem-número de canções que se tornaram clássicos ao longo das décadas, como “Mestre Jonas”, “Juruti Butterfly” e “Desenhos no Jornal”.
Apesar do sucesso, o projeto duraria pouco, pois Zé Rodrix abandonaria a empreitada em 1973, logo após a conclusão do segundo álbum da banda, “Terra”.
Com a partida de Rodrix, o grupo renasceria como a dupla Sá & Guarabyra e construiria uma carreira vitoriosa carregada de sucessos, como “Sobradinho”, “Dona”, “Caçador de Mim”, “Espanhola” e “Roque Santeiro”.
Agora, após mais de cinco décadas de estrada, Luiz Carlos Sá se prepara para lançar no mês de maio seu primeiro trabalho sem o companheiro Guarabyra.
Intitulado “Solo e Bem Acompanhado”, o disco é um projeto idealizado há mais de 20 anos e traz músicas compostas por Sá ao lado de parceiros como Flávio Venturini, Mamour Ba e o poeta tropicalista Torquato Neto (1944-1972).
“Eu já tinha resolvido lançar esse disco várias vezes, mas sempre acabava deixando a ideia de lado por motivos diversos”, conta o músico. “Comecei a gravá-lo em 1999, mas tive que parar quando reformamos o trio Sá, Rodrix & Guarabyra, em 2000. Acho até que essa pausa foi boa para que eu pudesse amadurecer mais o disco, que na minha opinião continua bem atual”, analisa.
Sá explica que o nome do álbum deixa bem claro o espírito colaborativo presente nas faixas – alguma das quais contam com a participação especial de convidados ilustres como Roupa Nova, Armandinho e Frejat.
“Mesmo sendo um trabalho solo, eu queria manter um clima de parceria nas músicas”, pontua ele.
Entre os destaques do novo trabalho está a regravação de “A Ilha”, que fez sucesso na voz do cantor Tavito (1948-2019). Originalmente lançada em 1979, a canção ganha agora um dueto inédito entre Sá e o cantor, compositor e guitarrista Roberto Frejat.
“Eu estava de olho nessa música há muito tempo e, toda vez que a cantava, eu me lembrava do Frejat, de quem sou um fã incondicional e considero um dos grandes nomes que surgiram naquele movimento do rock Brasil, na década de 80”, entrega Sá.
“Um dia eu liguei para ele e disse ‘Quero te mostrar uma música e perguntar o que acha’. O Frejat se apaixonou de imediato e topou cantá-la comigo – ele ainda colocou uma linda ‘slide guitar’ no arranjo. Fiquei muito contente com o resultado”, confessa.
Oldies & inéditas
Composto por 12 canções – nove são inéditas –, “Solo e Bem Acompanhado” faz uma ponte perfeita entre o rico passado de Sá e sua perfeita habilidade de manter os olhos fixos no presente. Um bom exemplo é a faixa “Pra Contar Pra Mim”. Embalada por uma pegada de rock ruralista, a canção leva o ouvinte numa viagem comovente que traça a extinção de um clã indígena da nação Krahó.
“Essa letra chegou para mim inesperadamente”, recorda-se. “Eu estava num bar em São Paulo quando uma amiga me apresentou a um índio da tribo Krahó. Em meio a muitas doses de tequila, ele me contou do aniquilamento de sua nação durante uma sangrenta guerra entre tribos. Aquilo me deixou triste e ao mesmo tempo maravilhado. Eu senti na hora que devia passar a história para frente como um testamento humanista”, ratifica.
Ao longo do disco, Sá faz um passeio sonoro opulento, explorando estilos musicais diversos. Há toadas melancólicas (“Eu Te Via Clareando”, composição de Sá com versos de Torquato Neto); choros bossa-novistas (“Serra Mineira”, que traz Armandinho tocando bandolim); e coros espirituais sedutores (“Os 10 Mandamentos do Amor”, que tem participação do conjunto vocal Golden Boys).
O álbum continua sua batida melódica com “Sem Uma Luz”, seguida pelo pop romântico “Sobreviver É Ter Você”; outras surpresas são a idealista “Um Povo Com Vida” (composta em parceria com Mamour Ba, ex-integrante da banda Obina Shock), e a orquestral “Cada Um de Nós” (composição de Sá com Cid Ornellas – violoncelista da orquestra sinfônica de Minas Gerais e irmão do saxofonista Nivaldo Ornellas).
Completam o repertório a swingueira latina de “Mato e Morro”, a regravação de “Caçador de Mim” (com vocais do grupo Roupa Nova) e a exuberante “Não me Empurre Atoa”, com seu violão de aço que remete ao folk rural popularizado por Sá nos anos 70.
Ele, inclusive, faz questão de ressaltar a pluralidade sonora que o LP carrega. “Eu quis fazer algo bem diferente do chamado ‘rock rural’. Minha intenção era explorar outras linguagens e expandir os horizontes. Tenho orgulho do meu passado, mas na música, como na vida, é preciso mudar sempre que possível”, prega.
Dupla
Mesmo com o disco solo, Sá diz que sua dupla com Guarabyra segue firme.
“Estamos ativos, mas estamos distantes – muito pelo fato de eu estar morando em Portugal e o Guarabyra ser um compositor muito presencial, que gosta de fazer as coisas olho no olho. No momento estamos vivendo essas dificuldades por causa da distância, que nem mesmo os Skypes da vida estão resolvendo”, brinca.
Mas ele confidencia que Sá e Guarabyra já preparam composições para serem lançadas muito em breve.
“Queremos fazer um disco de inéditas, então isso vai me fazer viajar bastante para completarmos esse projeto o mais rápido possível. É a desculpa perfeita para rever o Guarabyra e fazer um trabalho novo. Tudo que eu tenho que fazer é juntar a fome com a vontade de comer”, arremata Sá, às gargalhadas.
Ficha técnica
Título: 'Solo e Bem Acompanhado'
Artista: Luiz Carlos Sá
Edição: Berengue