Em 1880, o governo imperial de Dom Pedro II decidiu reforçar seus cofres com a implantação de uma taxa extra sobre o transporte público. Quem andasse de bonde pagaria, além da tarifa, um vintém, que era a menor unidade monetária da época. Foi suficiente para arrastar milhares de pessoas às ruas do Rio de Janeiro, depredando os veículos. Conhecido como a Revolta do Vintém, o episódio mostra que, desde o Brasil Império, o transporte tem sido o grande catalisador da indignação popular. Em capítulos mais recentes da nossa história, nos últimos cinco anos, as duas grandes manifestações que tiraram o país da inércia tiveram origem nessas engrenagens. Em 2013, o primeiro levante popular desde as Diretas Já, nos anos 80, começou por causa dos R$ 0,20 de reajuste da passagem de ônibus em São Paulo. Em 2018, toda a economia do país parou junto com os caminhoneiros, em uma greve que terminou com a redução de R$ 0,46 no preço do litro de diesel. Com pesquisa histórica, reportagens, fotos e minidocumentários, o especial A revolta dos centavos mostra que, por trás desses movimentos, as causas vão muito além desses R$ 0,66.
Do vintém aos centavos, milhares de pessoas se unem em uma batalha contra reajustes. Foram anos de custo de vida arrochante, em que o preço das passagens de ônibus subiu acima da inflação. A gota d’água dos R$ 0,20 em São Paulo, em 2013, fez entornar o balde do país todo. O mesmo aconteceu com o diesel. O combustível subiu tanto, e tão acima da inflação, que caminhoneiros estavam pagando para trabalhar, e grandes transportadoras perdiam suas margens de lucro.
Para levar uma carga de Salvador a Belo Horizonte – cerca de 1.000 km –, o caminhoneiro Charles Sampaio Ferreira, 42, recebeu R$ 3.000 pelo frete, mas afirma ter gastado R$ 2.950 para reabastecer o tanque. “A profissão está inviável”, afirmou Ferreira em entrevista concedida no fim da greve.
O pesquisador de mobilidade urbana e professor de arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Roberto Andrés, explica que tanto os protestos de junho de 2013 quanto a greve dos caminhoneiros, neste ano, têm como raiz o sobrepreço de um serviço extremamente essencial, e são exatamente os aumentos do ônibus e do combustível que interligam essas revoltas. “Sem deslocamento, o abastecimento é comprometido, e, quando as pessoas não conseguem se deslocar, não conseguem acessar serviços como educação e saúde”, diz.
Impacto imediato
De acordo com o economista e integrante do movimento Tarifa Zero André Veloso, desde que as cidades começaram a ganhar importância, no século XIX, qualquer reajuste no serviço de transporte é capaz de fazer explodir uma onda de protestos. “O transporte é o que liga as pessoas à urbe, o que faz elas entenderem tanto o direito delas como esse cotidiano de trabalho, de reprodução da vida, de produção de alguma coisa para outras pessoas, e não para elas próprias. Quando a tarifa aumenta, é um impacto nessa percepção do que elas estão fazendo com a própria vida. Quando você tem um aumento, espontaneamente as pessoas veem que as barreiras que elas têm para acessar o transporte se ampliam muito mais”, ressalta Veloso, autor da dissertação de mestrado e livro “O Ônibus, a Cidade e a Luta”.
Segundo a antropóloga, cientista social e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, Rosana Pinheiro-Machado, os dois movimentos escancaram a dependência do transporte terrestre. “Nas grandes cidades, o país é dependente de ônibus e carro. Na produção, é dependente dos caminhões. Grande parte da população vive em ônibus que atrasam, são assaltados e expressam toda a precariedade da vida, em ambos os aspectos: seja na precarização do trabalhador, do caminhoneiro, seja na pessoa comum que fica uma hora no ponto quebrado, vai pegar ônibus lotado, de pé, não vai chegar no horário”, analisa.
Na avaliação dela, o transporte é indicador da qualidade de vida. “Isso é um símbolo da vida tanto dos caminhoneiros quanto das outras pessoas – além de trabalhar, não consegue se locomover de uma maneira digna”, finaliza a cientista social.
Enquanto Nova York já tinha metrô, nas cidades grandes do Brasil Império, tanto ricos quanto pobres dependiam do bonde, que mal chegava a áreas mais afastadas. Mas, desde aquela época, o usuário já pagava o pato. Em 1º de janeiro de 1880, entrou em vigor o imposto do Vintém, que correspondia à menor unidade monetária de então. Era um valor a ser pago além da tarifa de bonde, para sanar as contas do governo, em dificuldades financeiras. Foi o primeiro aumento tarifário de vulto na história brasileira. Antes mesmo de entrar em vigor, levou mais de 5.000 pessoas às ruas do Rio de Janeiro. Foram recebidas por cavalaria e policiais armados. Nos dias seguintes, a insatisfação foi crescendo, até que a violência estourou. Teve barricadas, pedradas, garrafadas e tiros, bondes derrubados, até que o serviço foi suspenso. Três homens foram mártires da Revolta do Vintém. A taxa continuou sendo cobrada até março, quando todo o gabinete de governo foi substituído. Em setembro, foi definitivamente revogada.
Em 1946, a Light desistiu da concessão do serviço de bonde na cidade de São Paulo. O município criou a Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC) para operar todos os bondes e ônibus. A tarifa, que estava congelada, passa de 20 centavos para 50 centavos, subindo 150% de um dia para o outro, em 1º de agosto de 1947. Pela manhã, a população manteve a rotina. A partir das 11h, quando as primeiras turmas de trabalhadores deixaram as fábricas para o horário de almoço, em diferentes pontos da
cidade e ao mesmo tempo, grupos de populares "enloqueceram", destruindo veículos de transporte coletivo. Outras pessoas foram aderindo ao quebra-quebra. Centenas de ônibus e bondes foram incendiados entre 11h e 15h. Cavalaria e infantaria foram usadas para impedir uma invasão da prefeitura e tentativas de linchamento de políticos. O dano foi tão
grande que a cidade levou sete anos para conseguir equiparar sua frota ao nível de 1947. A brusca diminuição do número de veículos e a insustentável estrutura financeira baseada só na tarifa como receita abriram espaço para a entrada de empresários privados no transporte por ônibus. Assim como houve com os black blocs, 66 anos depois, os "cidadãos de bem" foram convocados a ficarem em casa, enquanto as forças policiais lidavam com "os desocupados" que lançavam pânico nas ruas. No fim de outubro, em plena campanha eleitoral, o preço das passagens baixou para 40 centavos. Tarde demais. A CMTC já tinha ganhado o apelido de Custa Mais Trinta Centavos.
Em 1953, usuários do bairro Pompeia, na região Leste de Belo Horizonte, organizaram uma inédita greve de passageiros, negando-se a utilizar o transporte coletivo e impedindo outros passageiros de o fazerem até que as condições do serviço melhorassem.
Quarenta ônibus foram depredados em Brasília e cidades satélites, por causa de aumento na passagem.
Com 48 milhões de litros de combustível e derivados não entregues, principalmente em Minas Gerais e São Paulo, algumas cidades ficaram sem gasolina nos postos.
Cerca de 500 veículos são depredados e dez incendiados em Salvador, contra aumento tarifário. Foram 54 presos, 48 feridos, um morto. A prefeitura reduziu parcialmente a tarifa.
Foram mais de 800 mil caminhões parados em todo o país, por mais de uma semana, com apoio de transportadoras e postos de combustíveis. No fim, algumas reivindicações foram atendidas, incluindo a principal, que era a mudança do peso por eixo, que passou de 5% para 7,5%
Em agosto, a Prefeitura de Salvador reajustou as tarifas de ônibus de R$ 1,30 para R$ 1,50. A partir dos primeiros protestos, convocados por entidades estudantis, a situação explodiu. Dezenas de milhares de jovens, em sua maioria estudantes secundaristas, passaram a realizar bloqueios diários, paralisando completamente a cidade, mas sem
depredação. Sem rede social, era tudo no boca a boca, nas salas de aula e portarias de escolas. O que retroalimentou este movimento foi a descoberta, por parte dos estudantes, de sua capacidade de intervenção na cidade. A tarifa não foi reduzida, mas conseguiram a extensão do benefício da meia-passagem para as férias e os domingos, e para os pós-graduandos.
Caminhoneiros autônomos, por iniciativa da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), fizeram protesto nacional de 72 horas.
Com o transporte público já problemático em Florianópolis, foram inaugurados em 2003 terminais de baldeação que a população não aprovou. Junto, veio o aumento das tarifas. Em junho de 2004, houve novo aumento. Só que, naquele momento, a campanha pelo passe livre já estava madura entre os estudantes. A partir de 28 de junho de 2004, começaram a convocar atos contra o reajuste. Dia a dia, as manifestações foram se espalhando pela capital catarinense. No dia 2 de julho, houve um violento confronto entre manifestantes e policiais. No dia 7, um juiz suspendeu o reajute por 30 dias. Em 26 de outubro, o movimento conseguiu a aprovação da Lei do Passe Livre na cidade - que foi suspensa em 2005.
Em 2005, no fim de maio, a prefeitura de Florianópolis decretou novo aumento nas tarifas. As manifestações voltam, mas com forte repressão policial desde o primeiro dia. A Câmara Municipal foi depredada. No dia 16 de junho, o prefeito anuncia intenção de revogar o aumento. O movimento despertou outros, que conseguiram cancelamento do reajuste das passagens em Uberlândia e Vitória.
A cidade vive uma jornada de luta contra o aumento da tarifa, que havia sido reajustada de R$ 1,45 para R$ 1,65. Essas mobilizações, ainda que passageiras, eram organizadas, com estudantes espalhando cartazes com os dizeres “Passe Livre Já!” e “R$1,65 é um assalto!”.
Greve dos caminhoneiros afetou o transporte de bens industriais e produtos agrícolas, como ração para criação de frangos e o transporte de animais vivos.
Protestos começaram tímidos, em São Paulo, por causa do aumento de R$ 0,20 no preço da passagem. O movimento espalhou-se por todo o país e ganhou uma pauta múltipla, contra a corrupção, contra o governo, contra a Fifa, a Copa do Mundo e, claro, contra o alto custo do transporte em todo o país. Tornou-se a maior série de manifestações de rua desde o movimento pelo impeachment do presidente Fernando Collor, 21 anos antes.
Greve dos caminhonerios afetou a produção de aves e suínos, com a JBS parando a produção em oito fábricas, e provocou falta de produtos nos supermercados no Paraná e em Santa Catarina. Os caminhoneiros conseguiram algumas vitórias: aprovação da nova Lei do Motorista e um lugar para representantes dos autônomos serem ouvidos nos assuntos do transporte.
Durante 11 dias, com apoio da população, caminhoneiros pararam e seguraram consigo toda a economia do país. As perdas dos setores ainda estão sendo contabilizadas. Eles conquistaram um corte de R$ 0,46 no preço do litro do diesel, a suspensão da cobrança de pedágio pelo eixo suspenso quando o caminhão passa vazio e uma tabela mínima de preço do frete, que ainda não é unanimidade.
Atos de resistência e levantes populares existem desde sempre. Reforçados pela desigualdade social, explodem em todo o mundo, motivados por questões trabalhistas, sanitárias, religiosas ou de direitos humanos. Mas no Brasil, desigual por natureza, o que incendeia as multidões é exatamente o que as move: o transporte, seja ele privado ou coletivo, o grande “órgão de choque” que é o primeiro a sentir quando o sistema está doente. Em ônibus e metrô, todo reajuste tarifário aumenta a exclusão social. Já no transporte de cargas, todo aumento de custo significa, na ponta da cadeia, comida chegando mais cara à mesa das famílias.
Em nações mais amadurecidas, questões maiores e de repercussões de longo prazo – como reformas trabalhistas e previdenciárias e filiações a acordos e comunidades internacionais – levam o povo à revolta e, muitas vezes, ao quebra-quebra seguido de confronto com forças policiais. No Brasil, a insatisfação com serviços ruins tem sido o catalisador. Quando esse serviço fica ainda mais caro, é jogar gasolina no fogo. “A vida das pessoas já é bastante sacrificada, muitos dispendem boa parte do seu tempo no transporte público, pegam dois ou três ônibus, chegam cansados. E ainda precisam pagar caro”, considera Cláudio Frischtak, presidente da Inter B Consultoria Internacional de Negócios.
Quando os caminhoneiros decidiram parar, em maio de 2018, o que se viu foi uma verdadeira revolução do empoderamento de uma categoria geralmente marginalizada. “Houve uma sensação de que o país parava sem eles, e começaram a se entender como sujeitos políticos capazes de mudar a realidade brasileira”, analisa a antropóloga, cientista social e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) no Rio Grande do Sul, Rosana Pinheiro-Machado. “Há uma grande vontade de que o Brasil passe a ser um país com serviços e bens públicos mais decentes”, resume.
Paradoxos
O Brasil vive hoje uma modernidade incompleta, em que a internet das coisas convive com caminhões fumacentos em estradas esburacadas, e celulares com realidade virtual estão nas mãos de passageiros espremidos em ônibus barulhentos, abafados, fedorentos e lotados. Por isso, qualquer mudança que piore essas condições já precárias despertam reações tão fortes e imediatas.
O rodoviarismo como política econômica nacional leva o brasileiro a reagir apenas quando as condições do transporte e sua relação com o cotidiano das cidades são afetadas. “Em sua maioria explosões inesperadas e incontroláveis de indignação, essas revoltas expressam reações a contradições que se repõem continuamente na vida urbana e que informam a própria estrutura de relações sociais da população”, escreve André Veloso no livro “O Ônibus, a Cidade e a Luta”.
Por isso, o povo se mantém “pacífico, simpático, animado, receptivo” (e quaisquer outros adjetivos com os quais estrangeiros nos rotulam) diante da corrupção e de governos que pedem sacrifícios ao trabalhador enquanto aumentam seus salários.
Não há por aqui um Movimento dos Cidadãos Indignados, como na Grécia. Até os slogans de protestos são relacionados ao consumo, como “O gigante acordou”, extraído da campanha do uísque Johnnie Walker, e o “Vem pra rua”, retirado de anúncios da Fiat. Pode ser sinal não de alienação política, mas de imaturidade: muitos dos lemas do Maio de 1968 na França também vieram do mundo publicitário. Por lá, neste século XXI, a população já está madura o bastante para brigar por pautas mais amplas, como direitos trabalhistas. Analisando-se esse passado, pode-se chegar a um sinal de esperança de que o Brasil, um dia, também vai aprender.
Foto: Eitan ABRAMOVICH/AFP - 25.5.2018
19 de dezembro de 2017 O Congresso argentino aprovou uma polêmica propsota de reforma da Previdência para tentar reduzir o déficit fiscal, após violentos confrontos entre manifestantes e polícia. A lei eleva a idade de aposentadria e corrige valores das pensões. Pelo menos 162 pessocas ficaram feridas. As cenas de repressão nas ruas não eram vistas desde a revolta que derrubou o governo em 2001.
Foto: JGUSTAVO BAXTER
19 de dezembro de 2017 Em 2013, as Jornadas de Junho foram motivadas pelo aumeto de 20 centavos na tarifa de ônibus, mas transbordou para diversas outras reivindicações antirracistas, feministas, LGBT, meio ambiente, além de questões politicas como o Fora Lacerda.
Foto: JOSE JORDAN / AFP - 19.2.2012
15 de maio de 2011. Começaram em 58 cidades os protestos chamados de "Indignados". Espontâneos e inicialmente organizados pelas redes sociais, reivindicavam mudanças na política e no modelo econômico. Heterogêneo, o grupo tem em comum a aversão à classe política.
19 de fevereiro de 2012. Milhares de pessoas participam de protesto contra uma reforma trabalhista que retira direitos e contra cortes de gastos que afetariam benefícios sociais.
Foto: Andrew CABALLERO-REYNOLDS/AFP - 24.3.2018
24 de março de 2018. Aterrorizada pelos sucessivos massacres em escolas, parte da população dos Estados Unidos vai às ruas na "Marcha pelas nossas vidas", movimento que pede leis mais rígidas no controle de armas no país. Houve manifestações em todos os Estados. A estimativa é que cerca de 1 milhão de pessoas tenham participado das manifestações.
Foto: F. Blanc / Force Ouvriere - 17.5.2016
De 2016 a 2018. País enfrenta sucessão de manifestações contra uma reforma trabalhista considerada muito favorável às empresas e prejudicial ao empregado.
Foto: Aris Messinis/AFP - 3.11.2016
8 de maio de 2016. Endividada e sem conseguir mais crédito, a Grécia resolve cortar gastos diminuindo os benefícios pagos a aposentados e aumentando a idade mínima para se aposentar. No dia da votação do pacote de medidas pelo Parlamento, greves e protestos que vinham acontecendo há meses se intensificaram e levaram mais de 15 mil pessoas às ruas de Atenas. Manifestantes atiraram bombas contra a polícia, que revidou com gás.
Foto: Niklas HALLE'N/AFP - 2.7.2016
2 de julho de 2016. Milhares de manifestantes se reuniram no centro de Londres numa marcha contra a aprovação da saída da União Europeia. O resultado, já definido, mergulhou o Reino Unido em caos político. Cerca de 60% da população londrina havia rejeitado o Brexit. Mesmo derrotados pelo Parlamento, ainda expressavam sua indignação nas ruas.
Foto: FETHI BELAID / AFP - 17.12.2011
Tunísia, Líbia, Catar, Síria, Jordânia, Argélia, Iêmen, Omã, Djibouti, Somália, Sudão, Iraque, Bahrein, Kuwait, Marrocos, Mauritânia, Líbano, Arábia Saudita e Egito
2010 a 2012 Em 18 de dezembro de 2010, o jovem tunisiano Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo como forma de protesto contra as condições de vida no país. O ato desesperado despertou outros protestos e acabou culminando no que, mais tarde, veio a ser chamado de Primavera Árabe. Foi uma onda revolucionária de manifestações no Oriente Médio e no Norte da África, em que movimentos pró-democracia surgiram em decorrência de problemas demográficos, alto índice de desemprego, duras condições de vida, governos corruptos e autoritários. Alguns governos foram derrubados, concessões econômicas feitas e presos políticos, liberados.