Os tempos modernos, com sua vida acelerada e exigências em tempo integral, que levam os adultos a frequentes quadros de insônia, têm atingido também as crianças, acendendo um alerta vermelho numa sociedade que se habituou a normalizar condições problemáticas. De acordo com a Associação Brasileira do Sono, 73 milhões de brasileiros sofrem de insônia, o que atingiria cerca de 30% de crianças com menos de 5 anos.
Presidente do Departamento de Sono da Sociedade Mineira de Pediatria, Ana Elisa Ribeiro explica que, para compreender a insônia, é necessário ter em mente que o ser humano “dorme em ciclos”. “A gente passa pelo estágio levíssimo, leve, profundo e REM, que é o dos sonhos, o que corresponde a um ciclo completo”, explica.
Não é incomum ouvir pessoas que sofrem de insônia afirmarem que têm o “sono leve”, o que pode estar associado a uma dificuldade de completar o ciclo do sono. Ana Elisa conta que, depois de 3 anos de idade, os ciclos de sono da criança atingem a duração dos de uma pessoa adulta, com média de uma hora e meia a duas horas.
“Mas, antes disso, quanto menor a criança, menor é o ciclo”, pontua. Antes de um ano, os ciclos de sono dos bebês variam entre 40 minutos a uma hora, no máximo. Segundo a especialista, ao finalizar um ciclo, a pessoa “superficializa o sono e checa o ambiente de maneira breve, sem tomar muita consciência, através de estruturas internas do cérebro, antes de retomar o estágio inicial, levíssimo, em que qualquer coisa a acorda”.
Acalanto
Esses despertares fisiológicos são normais entre os ciclos de sono. A principal diferença do adulto para a criança é essa “capacidade de voltar a dormir sem nem perceber que isso aconteceu, de forma muito rápida”. “Mas as crianças, nesses momentos de transição de ciclo, especialmente os bebês pequenos, vão precisar de ajuda para adormecer novamente”, afirma Ana Elisa, que cita estímulos conhecidos, como “colo, bico, mamar o peito da mãe, receber carinhos, ouvir cantigas e ser ninada”.
“Se é assim que a criança está habituada a adormecer e ela tomar consciência desse despertar, certamente ela vai chamar os pais para ajudá-la a trilhar aquele caminho que ela não sabe fazer sozinha”, exemplifica a pediatra, sublinhando que “a principal causa de insônia em criança é comportamental”. A veterinária Juliana Baccarini, 38, conta que sofreu durante muito tempo com a insônia de sua filha, atualmente com três anos.
“Até os dois anos, ela acordava a noite inteira, de meia em meia hora, e não adiantava ficar no quarto, dormir com ela, ninar. Era um desespero. Só no último ano que o sono dela estabilizou”, comemora ela, que recorreu a medidas que incluíam “voltas pelo bairro de carro, massagens pediátricas em livros orientais, mamadeiras e incontáveis conselhos”.
Escuro e silencioso
O caso de Juliana está longe de constituir uma exceção. Quase todo mundo conhece relatos de mães que penam para fazerem os filhos dormirem uma noite completa, sem interrupção. A pediatra Ana Elisa Ribeiro destaca que, “para qualquer um de nós dormir, o ambiente mais saudável é aquele escuro e silencioso”.
Ela aconselha que, tanto o adulto quanto a criança, comecem a se preparar, cerca de trinta minutos antes de dormir, com uma rotina de poucas e tranquilas atividades, para que o corpo, aos poucos, “acione esse piloto automático para dormir”. Ela indica “tomar um banho, escovar os dentes, colocar um pijama, deitar na cama ou no berço, ler uma história, fazer uma oração, apagar a luz e, a partir daí, silêncio”, para uma noite serena.
Outra contribuição fundamental para as crianças maiores seria a prática de exercícios físicos durante o dia. “Eu preciso gastar energia para juntar uma substância que me causa a pressão de sono, que é a adenosina”, sustenta Ana Elisa. Para crianças e adolescentes que já convivem com ansiedade, ela sugere algumas técnicas de relaxamento muscular, com exercícios de respiração e foco mental que afastam os pensamentos negativos na hora de deitar na cama.
Outra questão recorrente é a má influência da tecnologia nos hábitos de sono. “Muitas mães, com esse processo de exaustão, acabam entregando um celular à noite na mão da criança, porque ela fica ali parada. Mas é importante ressaltar que o cérebro dela está sendo estimulado”, diz Ana.
Tecnologia
A pediatra afirma que a luz desses aparelhos eletrônicos “impede a produção natural de melatonina”, hormônio crucial na regulação do sono. “A gente começa a produzir melatonina cerca de uma a duas horas antes do nosso horário habitual de sono. O uso de eletrônicos nesse período atrasa a produção de melatonina e reduz em cerca de 50% o pico de melatonina que eu deveria produzir no meio da noite, quando o meu sono deveria estar mais intenso”, alerta a especialista, que ainda aborda o fato de as redes sociais trabalharem com a chamada “área de recompensa”.
“Eu posto alguma coisa e fico aguardando a repercussão, o que estimula a minha ‘área de recompensa’, que é muito acionada na vigília, o que também atrapalha o sono”, diz. Ana Elisa cita um estudo que mostrou que “só o fato de as crianças e adolescentes dormirem com o celular no quarto piora o sono deles, porque eles dormem mais alertas, no sentido de não quererem perder nada”. “É extremamente importante que, de uma a duas horas antes de dormir, não haja mais contato com aparelhos eletrônicos, principalmente quando pensamos nas crianças e adolescentes…”, arremata a pediatra.
Não existe medicamento para a insônia
Presidente do Departamento de Sono da Sociedade Mineira de Pediatria, Ana Elisa Ribeiro é peremptória ao afirmar que “tratamento de insônia não é medicamentoso nem para adulto, que dirá para criança”. Ela se baseia em um estudo da Academia Americana de Medicina do Sono, que avaliou “14 medicamentos comumente prescritos para insônia em adultos, e revelou uma baixíssima eficiência no tratamento”. “Se eu estou tomando um remédio para insônia, a chance de eu continuar tendo insônia é muito alta”, assegura a pediatra.
No caso das crianças, o cuidado com “a questão da segurança das drogas deve ser redobrado”. “O tratamento adequado para insônia em adultos e crianças é criar hábitos saudáveis de sono”, complementa a especialista. Por fim, Ana Elisa recorre a estudos que comprovam que “um bebê que não dorme bem, tem mais chances de ser uma criança e um adulto com insônia”. Ou seja, quanto antes se iniciarem esses hábitos saudáveis de sono, “melhor será o resultado a longo prazo”. “O nosso corpo não funciona com privação de sono crônica, preciso dormir como preciso me alimentar”, diz.