Os 25 anos de idade da servidora pública Vitória Cristina são suficientes para ela se considerar uma pessoa autêntica. “Tenho uma personalidade que me permite tomar decisões”, garante ela, para quem “a sociedade não aceita muito bem o que é autêntico, diferente e foge do esperado”.
“Chega uma certa idade em que a sociedade cobra que você tenha carro, casa, e, quando você é autêntico, não se cobra tanto, só deixa acontecer”, acredita Vitória. Ela afirma que, infelizmente, “milhares de pessoas escondem o que são e negligenciam as próprias vontades para agradar à sociedade”.
Aos 45 anos, o assistente administrativo Marcos Valério também se vê como uma pessoa autêntica, por ser “sincero nas atitudes, falar o que pensa e não concordar com o que está errado”. “Alguns acham que a pessoa autêntica é arrogante, autossuficiente, que é o dono da verdade. Já desisti algumas vezes da minha autenticidade por conta dos embates”, admite Marcos.
Leonardo Victor, de 29 anos, atualmente trabalha como expedidor, e conta que teve que se afastar do pai ao decidir investir numa profissão que era vista apenas como hobby. “Para mim, ser autêntico é não seguir totalmente o que a sociedade tenta impor para a gente em termos de religião, filosofia, vestimenta. Muitas pessoas podem se afastar, achar que você está querendo aparecer”, opina ele.
Analista de tecnologia da informação, Erva Sodré, de 22 anos, concorda. “Ser autêntico tem principalmente a ver com um modo de pensar diferente. O mundo não é preto no branco, nada é tão fixo. Em religião, política, tudo é maleável”, diz Erva, que acredita que as pessoas autênticas “pagam um preço por serem diferentes”. “Já perdi amigos pela minha autenticidade, mas sempre fui quem eu sou, meus pais me ensinaram a não me esconder”, sustenta Erva.
Conceito
A psicóloga Marcelle Primo explica que, na psicologia, o conceito de autenticidade está relacionada a “um estado no qual a pessoa se mantém fiel a si nas suas atitudes e interações, baseadas nos seus sistemas de crenças, desejos, emoções e afetos e características de personalidade, sem ceder às demandas de outras esferas como família, amigos, emprego e demais instituições”.
“A autenticidade aparece quando uma pessoa, pelo uso do pensamento, da sua consciência e do livre arbítrio, opta por admitir que o seu modo de ser pode não ser o esperado para aquele grupo ou ocasião, e ela levará sua atitude adiante mesmo sob descontentamento e desaprovação. Ser autêntico é sempre correr um risco”, resume a especialista.
Os riscos mais comuns seriam o de parecer inadequado ou ser excluído. Marcelle lista exemplos práticos de autenticidade como “uma mulher não ter filhos mesmo sob constante pedido dos pais que querem ser avós, uma pessoa que gosta da vida não-monogâmica se casar e optar por um relacionamento aberto sem sofrer por isso, uma pessoa admitir votar em outro partido em meio a um grupo que vota no partido oposto e continuar interagindo com essas pessoas ou um trabalhador pedir demissão de um emprego que contradiz a sua estética e filosofia de vida e não se importar com receber menos em outro emprego”.
A psicóloga recorre a um ensinamento do professor Antônio Coppe para melhor esclarecer seu ponto. “Ser autêntico não é falar na cara do outro o que te der na telha, isso é só ser mal educado”, diferencia. Segundo ela, o caminho pela busca da autenticidade “não tem receita de bolo”.
“Cada pessoa precisará encontrar o equilíbrio entre aquilo que vale a pena e aquilo que pode criar uma grande polêmica e muita dor de cabeça. É uma busca contínua que requer paciência, pois as primeiras tentativas costumam ser desajeitadas e isso é ótimo. Para a autenticidade ser alcançada é preciso saber o que não fazer, o que não dizer, como não dizer e como não agir”, avalia.
O psicólogo Rodrigo Tavares concorda. Ele observa que um dos grandes obstáculos para se chegar à autenticidade “é a falta de conhecimento sobre si mesmo, sobre suas crenças e desejos”. “Não foi sem sentido que Sócrates, um dos grandes filósofos da Grécia Antiga, orientou seus discípulos a conhecerem eles mesmos. É se conhecendo que as pessoas conseguem direcionar suas vidas conforme suas crenças e desejos. Se a pessoa não se conhece, facilmente ela pode seguir as crenças e desejos dos outros”, pontua Tavares.
De acordo com o especialista, “o medo de desagradar” estaria na base do comportamento sem autenticidade. “As pessoas vão moldando o seu jeito de ser para serem aceitas e contrariando a si mesmas nesse processo”, salienta ele.
Desafios
A psicóloga Marcelle Primo não nega os percalços que podem atravancar a esperada busca pela autenticidade. “Soprou o vento mais forte da obrigação e a autenticidade pode sumir bem rápido”, detalha a especialista. “Caso a autenticidade seja tratada como um objetivo, a pessoa que a trata dessa maneira terá uma vida constantemente frustrante, o que não traz boas perspectivas futuras, pois não gostamos de ficar frustrados por muito tempo. Como processo contínuo, a autenticidade sempre nos faz recordar que a vida é, como disse Guimarães Rosa, ‘um rasgar-se e remendar-se’”, complementa Marcelle.
No mundo contemporâneo, outras dificuldades se impõem. “Estamos em 2024 e os modos de influência provém de vários meios que, além de velozes são muito efêmeros. As trends de Instagram e do TikTok, por exemplo, podem fazer parte da busca pela autenticidade. Um influenciador ou um estilo de vida mostrado em um canal do YouTube podem ser o parâmetro para substituir o repertório de comportamentos. Uma palestra vista em uma live em alguma plataforma pode ter força suficiente para justificar um modo de agir ante determinadas situações”, observa a psicóloga.
O psicólogo Rodrigo Tavares aponta que a busca pela autenticidade pode se converter em uma armadilha. “Paradoxalmente, o próprio estímulo à autenticidade pode se apresentar como uma pressão social por ter um estilo diferente, por exemplo, ou por não seguir certas regras sociais. Nesses casos, a própria diferença pode ser resultado de uma pressão social, e não um comportamento autêntico, ou seja, não refletir realmente as crenças e os desejos da pessoa”, finaliza o especialista.