Em “Mania de Você”, novela das nove da TV Globo, Mércia (Adriana Esteves) é uma governanta que sente necessidade em servir seus superiores para além do que a função exige. Na trama, por muito tempo ela foi submissa ao Molina, personagem de Rodrigo Lombardi, tendo uma relação que extrapolava o trabalho, chegando a ser parceira do vilão também na cama e nos crimes.

Mesmo após a morte de vilão e tendo se tornado rica, ela não quis deixar de ocupar a posição de empregada. Em uma entrevista ao gshow, Lombardi contou que a personagem de Adriana Esteves gosta de estar neste lugar. “A relação de prazer deles é de opressão, de dor, de humilhação na intimidação. Vocês vão ver um homem humilhando essa mulher, vão ver essa mulher sofrendo, mas amando sofrer. É uma estranha obsessão dos dois”, disse, pouco antes de a novela ser lançada. 

À primeira vista, esse tipo de posicionamento tende a ser enxergado como negativo e até como causador de repulsa. No entanto, por trás desse comportamento, pode existir uma série de fatores que expliquem os motivos pelos quais alguém almeja estar neste lugar. É importante ponderar, por exemplo, que, no fundo, todos gostam de estar nessa posição em certos momentos, como avalia o psicólogo clínico e psicanalista Danty Marchezane.

“Não podemos ser ingênuos: todos gostamos de sermos submissos em alguma medida. O par sadismo versus masoquismo foi trabalhado por Freud há 100 anos, e ele já nos mostrava como essa energia sexual pulsa em nosso corpo, ora com sadismo, ora com masoquismo”, ressalta o conselheiro do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. 

Também vale destacar que, em uma relação que exista alguém submisso, provavelmente o outro será impositivo. Isso não quer dizer, no entanto, que se trata de um relacionamento de encaixe perfeito, mas não deixa de acontecer uma troca entre as partes.

“Um se serve do outro: o submisso tira um ganho dessa relação e seu parceiro também. Então, nesse sentido, é uma relação que funciona com um grau de parceria sintomático de agressividade. O submisso quer ser punido por alguma culpa inconsciente, e então permanece nessa relação pensando que seja amor”, diagnostica a psicanalista e mestre em psicologia clínica, Vanessa Leite Teixeira.

E a busca pela submissão pode envolver fatores emocionais, culturais e psicológicos de cada indivíduo, porque vivemos em uma cultura que reprime emoções e corpos. “Essa cultura se baseia em formas de condicionar o prazer ao proibido, ao pecado e à dor. Todos esses motivos vão contribuir para uma forma de prazer sexual sem o ato sexual, que é visto proibido, sujo e pecaminoso”, analisa Marchezane.

O psicólogo destaca que esse comportamento pode ser a soma de traços da personalidade com o resultado de padrões de criação. “Mas não costumo dizer que este é um ator desviante, porque tem um sentido patologizante. Se olharmos bem de perto, todos nós somos desviantes, ora submissos, ora indóceis”.

Vanessa Leite Teixeira analisa ainda que ceder em alguns momentos não faz com que, necessariamente, um relacionamento seja pautado pela submissão.

“É preciso negociar os interesses individuais e os interesses de continuidade da relação conjugal o tempo todo. Nesse ponto de vista, é importante ceder numa relação. Não tem como você querer sair sempre ganhando tudo que você queria, porque se isso acontece, aí você está se relacionando com um submisso, e o tóxico é você. Ao negociar, é possível colocar sua posição, expressar suas vontades, desejos e objeções e se decidir. Isso é um posicionamento subjetivo que não é submisso, porque a pessoa não se coloca à mercê da vontade do outro”, reflete. 

Relação do machismo e submissão

Ao falar em submissão, é praticamente impossível não fazer um recorte de gênero. Por muitos anos – e ainda hoje – a mulher é colocada em posição servidão ao homem, sem que necessariamente seja uma escolha dela, e esse papel reflete como a sociedade patriarcal e machista enxerga o sexo feminino. A psicanalista e mestre em psicologia clínica Vanessa Leite Teixeira analisa que, “culturalmente falando, o papel da mulher é de submissão, no sentido de que o outro vem em primeiro lugar.”

Ela lembra que, em 1955, foi lançado o artigo “O guia da boa esposa”, na revista “Housekeeping Monthly”, onde havia indicações do que a mulher precisaria fazer para ser considerada uma boa companheira.

“Aguarde o marido com o jantar pronto, pois assim mostrará que se atenta às necessidades dele, tire 15 minutos antes dele chegar e retoque a maquiagem para se mostrar revigorada, seja amável, coloque tudo em ordem, deixe as crianças limpas e bem arrumadas para quando ele chegar; minimize os ruídos, sorria e o escute, esteja feliz ao recebê-lo; deixe-o falar primeiro, guarde o que tem a dizer para depois; nunca reclame se ele se atrasar ou passar a noite fora”, cita. 

Mesmo tendo passados quase 70 anos desde o lançamento do artigo, ainda hoje há mulheres que se orgulham de estar nessa posição. Basta entrar no Instagram para ver dezenas de mulheres que mostram uma rotina de subserviência ao companheiro. Recentemente, Maíra Cardi fez um post no qual revelou ser submissa ao marido, Thiago Nigro, mesmo ela sendo uma empresária que alcançou sucesso empreendendo em programas de emagrecimento bem antes de conhecer o companheiro. 

“Reforçar essa submissão como a influenciadora fez é algo sério e preocupante, porque acentua o machismo estrutural responsável pelo assassinato de tantas mulheres no Brasil. Quando uma figura pública e influente defende a submissão ao marido, ela confere certo poder ao companheiro. Se o homem exigir algo que ela não queira, terá que se submeter? E se ela não o fizer, o que pode acontecer?”, questiona o psicólogo clínico e psicanalista Danty Marchezane. 

Vanessa analisa também que, para o homem, há ganhos se tiver uma parceira assim. “Isso não significa que todos os homens queiram parceiras assim, mas há benefícios e facilidades. Para mulher, também. Ela teria um casamento dito feliz, seria bem-vista aos olhos da sociedade que compactua com esse pensamento e pode acreditar que isso é amor ou que esta é, de fato, sua função no mundo: servir ao outro”, analisa a especialista. “O submisso se livra da responsabilidade de ir buscar saber de si e a que veio. Mas o preço a se pagar é alto”, pondera.