A participação de José Loreto no podcast Surubaum, comandado pelo casal Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, repercutiu na mídia e nas redes sociais na última semana, causando frisson em um misto de curiosidade e estranhamento. Tudo porque, durante a conversa, o ator revelou ter realizado fisting – prática sexual que envolve a inserção da mão, punho ou antebraço na vagina ou no ânus – em uma mulher, a pedido dela.
“Ela (falou) ‘dois dedos não’. Depois ela fez um gesto de quatro dedos e falou ‘bota a mão inteira’. Ela queria que eu… Ela me dirigiu e aí teve um momento que me vi com a mão fechada… Não gostei”, narrou Loreto, arrancando sonoras risadas do casal de apresentadores e da atriz e modelo Monique Evans, que também participava da atração.
Mas se, por um lado, o relato causou alvoroço e até escandalizou parte da audiência, sobretudo naqueles menos habituados a ter conversas sobre sexo ou sobre práticas sexuais menos convencionais, por outro, não empolgou e repercutiu pouco na comunidade fetichista, que lida de forma mais aberta com um horizonte mais amplo de possibilidades eróticas, sempre baseadas na consensualidade e no consentimento. O produtor de conteúdo adulto Fernando Brutto, 35, por exemplo, nem sequer havia ouvido falar da história, mas, ao saber das reações que sucederam a participação do ator no podcast, não estranhou.
“É engraçado notar que, na vida moderna, dentro e fora das redes, estamos inseridos em bolhas sociais de tal forma que, entre meus amigos, mesmo que alguns não pratiquem o fisting porque não gostam, esse é um tema banal. Então, é quando furamos essa bolha, como nesse caso, que percebemos esse assombro das pessoas”, comenta. Ele mesmo já experimentou situações assim.
“Embora raramente um vídeo meu chegue à timeline de quem não é o meu público, porque o algoritmo acaba criando esta barreira, já aconteceu de algum conteúdo escapar desse filtro. E a ironia é que, nesses casos, as reações são muito pautadas pelo moralismo, mesmo entre homens gays, que vão dizer que essa prática não é natural – mesmo argumento usado pelos conservadores para atacar as relações que não são heterossexuais”, critica.
Popularização
É provável, aliás, que a maioria dos adeptos do fisting – também conhecido como fist-fucking ou handballing – se identifiquem com o universo BDSM (bondage e disciplina, sadismo e masoquismo). Neste meio, em vez de tabu, o ato pode ganhar contornos de atração artística. Caso das performances de Fernando Brutto em festas fetichistas. “É curioso que a primeira vez que me apresentei assim foi na Horny (festa), em Belo Horizonte, que geralmente é vista como uma cidade mais recatada”, reflete, citando que, depois da experiência, já circulou por outras capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo.
Mas o produtor de material adulto reconhece que, hoje, o fácil acesso a conteúdos pornográficos, a debates de temática sexual em fóruns virtuais e redes sociais ou a aplicativos de namoro e sexo tem contribuído para a popularização, ainda que tímida, de técnicas que, antes, eram mais restritas a grupos que pertencem a nichos sociais muito específicos. Um fenômeno que também é destacado pelo psicólogo e sexólogo Rodrigo Torres, que reforça a importância de se ter conhecimento prévio para a realização do fisting.
Dicas e riscos
“É necessário saber, por exemplo, sobre como funciona a dilatação vaginal ou anal, além de compreender que alguns cuidados vão reduzir riscos de infecções e lesões durante a prática”, assinala Torres. Entre as medidas recomendadas está a boa higiene das mãos e antebraços. Também é recomendável manter as unhas curtas, para evitar cortes internos. O sexólogo ainda indica o uso de lubrificante íntimo à base d’água e de luvas, que vão minimizar riscos de contaminação.
Fernando Brutto acrescenta outras dicas práticas para quem deseja se aventurar pelo fisting. “A primeira coisa é saber que é preciso estar muito concentrado e conectado para, então, ter prazer. Tanto que, ao final, o cansaço não é físico, mas mental”, garante. “Você também precisa respeitar o seu corpo e ouvir os seus sinais. Se doer e incomodar, se não estiver confortável, pare”, indica, reforçando ser crucial o uso de muito lubrificante. “Por fim, indico que você faça com alguém que conhece, confie e saiba o que está fazendo. Se você sabe vai ser fistee (quem é penetrado) pela primeira vez, melhor ser conduzido por um fister (quem penetra) experiente, e vice-versa”, conclui.
Por sua vez, o médico Alexandre El-Aouar, coloproctologista e responsável técnico da colonoscopia do Centro de Diagnóstico e Tratamento (CDT) da Santa Casa BH, lembra que algumas pessoas alcançam o relaxamento necessário para a penetração mais facilmente que outras. “Mas, normalmente, mesmo para esse grupo, estamos falando de um processo gradativo, sendo perigoso tentar executar, não só o fisting, como o próprio sexo anal convencional, de forma abrupta, sem preparação”, detalha.
“Geralmente, os problemas ocorrem quando a penetração acontece por meio de ruptura da mucosa e da musculatura, gerando problemas como laceração vaginal ou anal, afrouxamento do esfíncter anal, incontinência fecal ou fissura crônica – é importante lembrar que a cicatrização de feridas no canal retal tendem a demorar longos período”, assinala o médico, pontuando ainda que lesões musculares nestas regiões demandam tratamentos mais complexo, incluindo cirurgia e fisioterapia.
Tabu médico
Na conversa com reportagem de O TEMPO sobre a prática do fisting da perspectiva médica, Alexandre El-Aouar pontuou que, ao ser convidado para a entrevista, se deu conta de como os tabus que circundam modalidades sexuais para além do sexo reprodutivo impactam, inclusive, a prática médica. “Para ficar em um exemplo, nós continuamos formando novos proctologistas que nunca abordaram, durante a residência médica, temas como o sexo anal – assunto que não está nos livros, manuais ou provas avaliativas no processo de formação”, relata.
Ele prossegue mencionando não ser incomum que pacientes busquem informações sobre questões relacionadas à prática anal em consultas com proctologistas. “Mas, muitos desses profissionais não se sentem preparados para auxiliar essas pessoas justamente porque há essa lacuna na formação”, salienta, indicando já ter visto médicos tratarem essas questões como piada.
“Precisamos entender que isso não é piada, mas, sim, parte da vida sexual de muita gente – o que inclui não só as práticas consideradas convencionais, como o sexo anal e suas variações, incluído o fisting”, assevera.
Mundo afora
Os apontamentos de Alexandre El-Aouar ecoam uma realidade de despreparo que supera os limites nacionais. É o que sugere, por exemplo, um artigo publicado em 2022 por duas pesquisadoras do Reino Unido, em que elas denunciam a relutância dos médicos britânicos em discutir possíveis danos do sexo anal, o que pode desamparar uma geração de mulheres jovens que não estão cientes dos cuidados que a prática implica.
Na opinião de Tabitha Gana e Lesley Hunt, médicas dos Sheffield Teaching Hospitals NHS Foundation Trust e do Northern General Hospital, que assinam o artigo traduzido pelo site Medscape, os profissionais de saúde, principalmente os médicos generalistas, gastroenterologistas e coloproctologistas, “têm o dever de reconhecer as mudanças na sociedade a respeito do sexo anal entre mulheres jovens e de atender a essas mudanças com conversas abertas, neutras e sem julgamento a fim de garantir que todas as mulheres tenham as informações necessárias para fazer escolhas conscientes sobre sexo”.
Além desse silenciamento, há evidências de que, quando chega ao prontuário, o assunto tende a ser tratado por um viés moralista. É o que constatou o antropólogo William J. Robertson, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Após analisar 147 publicações médicas sobre corpos estranhos no reto, o pesquisador demonstrou que era recorrente a associação entre essas ocorrências e práticas sexuais “pervertidas ou aberrantes”. Para ele, essa atitude pode contribuir para que pacientes, envergonhados e com medo de serem julgados por esses profissionais, evitem buscar ajuda mesmo em situações emergenciais.