Disputar uma edição das Olimpíadas é, se não o maior, um dos maiores sonhos de qualquer atleta. E para a velocista paranaense Flávia Maria de Lima, 31, esse desejo se concretizou em duas ocasiões. Ela disputou os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, e os 800 m rasos nas Olimpíadas de Paris, neste ano. “A Olimpíada é o ápice na carreira de todo atleta de alto rendimento”, disse ela em entrevista recente ao programa “Globo Esporte”, da TV Globo.

Nas últimas semanas, porém, em vez de se concentrar unicamente nos treinos para uma das provas mais importantes de sua vida, Flávia tem lidado com um obstáculo que surge por causa de um embate com o ex-companheiro. Em vídeo no qual aparece às lágrimas, a atleta contou que, desde o início do ano, vive um divórcio conturbado porque, toda vez que precisa viajar a trabalho, o ex-marido protocola um pedido na Justiça para requerer a guarda da filha deles, de 6 anos, alegando abandono parental.

“Toda competição que eu estava participando, ele estava protocolando um processo na tentativa de tirar a guarda da minha filha, tentando me desestabilizar (...), como se fosse um crime uma mulher ter que viajar para trabalhar”, contou. O desabafo de Flávia expõe um questionamento que sempre surge quando uma mulher se encontra em situação semelhante: por que, quando é a vez de elas saírem de casa para trabalhar, o papel como mãe é posto à prova, enquanto o mesmo não vale para homens que são pais?

Parte dessa questão pode ser respondida quando se observa o cerne estrutural de uma sociedade, segundo a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, a jurista e advogada Maria Berenice Dias. “Nós ainda vivemos em uma sociedade absolutamente machista e sexista, que atribui exclusivamente à mãe aquilo que se chama de ‘economia do cuidado.’ Ou seja, é a mulher que deve cuidar dos filhos, da casa, do marido, dos doentes, dos idosos… Esta seria, então, a maior responsabilidade de uma mulher”, reflete.

Por outro lado, o homem, estando livre das obrigações sociais e afetivas para com a família, fica responsável pelo “provimento e manutenção da entidade familiar”. “E isso sempre deu a ele um grande empoderamento, porque é ele quem está no mundo público, fazendo girar a roda da economia. E esse desequilíbrio que existe nessas relações acaba se refletindo exatamente nos exercícios da parentalidade”, pondera Maria Berenice, que foi a primeira mulher a ingressar na magistratura do Rio Grande do Sul.

Vale destacar, porém, que, na atualidade, a responsabilidade do provimento também recai sobre as mulheres. “Além de exercerem trabalho remunerado – em 50,8% dos lares, as mulheres são o arrimo da família –, elas são as únicas responsáveis pelo trabalho invisível. Em suas pequenas falhas, em quaisquer ausências, são julgadas com enorme severidade”, afirma a advogada e socióloga Gabriella Sallit, especialista em direito de família com dedicação exclusiva às mulheres.

Ao mesmo tempo, “muito pouco se espera dos homens”. “Um que pague metade das contas e passeie com os filhos aos fins de semana é um grande herói. Não é mentira dizer que um pai maravilhoso seria uma mãe qualquer. Ninguém cogita processar um jogador de futebol por abandono parental porque ele viaja a trabalho. Ninguém espera que um juiz, ao mudar de cidade por progredir de carreira, leve os filhos pequenos com ele, enquanto a mulher se mantém na casa de origem. As desigualdades de sexo estão em todas as classes”, assevera.

O que é abandono parental e quais são suas implicações?

A expressão “abandono parental”, que o ex-marido da velocista Flávia Maria de Lima tem apresentado à Justiça para requerer a guarda da filha, significa “não cumprir as funções inerentes à maternidade ou à paternidade”, segundo explica a advogada e socióloga Gabriella Sallit. Se comprovada, essa ação pode, de fato, implicar a perda da guarda dos filhos. No entanto, viajar a trabalho, por si só, não configura abandono parental.

“Se a atleta organiza a vida e a rotina da filha para viajar, a deixa em segurança com uma pessoa apta da sua rede de apoio, zela financeiramente e emocionalmente pela criança, o instituto não é aplicável. Imagina o que seria a vida das pessoas que trabalham como executivos, com representação comercial, como pilotos ou motoristas? Nenhum deles teria a guarda dos filhos”, aponta Gabriella.

A falta de representatividade feminina na Justiça também pode comprometer alguma decisão que privilegie os homens, por mais que isso não seja justificativa para a falta de sensibilidade em relação às questões de gênero, segundo a jurista e advogada Maria Berenice Dias. “Até porque muitas decisões absurdas são proferidas por mulheres juízas, que acabam repetindo esses estereótipos de gênero, sem uma leitura mais atenta da realidade atual de como as pessoas vivem”, afirma.

Por isso, ela destaca a importância da criação do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero, em 2021, por parte do Conselho Nacional de Justiça, que o tornou obrigatório em 2023. “Com esse protocolo, nenhum juiz pode apreciar uma causa sem se atentar às questões de gênero, não só feminino ou masculino, como também para questões que envolvem minorias sociais”, indica Maria Berenice.