“Mania”: substantivo feminino, definido pelo Dicionário Priberam de Língua Portuguesa (DPLP) como “apego excessivo ou obsessivo a uma ideia ou intenção”, sinônimo de expressões como “fixação” e “obsessão”. No sentido figurado, por extensão, representa “ato ou estado de quem repete ou mantém uma afirmação, uma ação ou um comportamento, sem desistir ou aceitar recusa”. É precisamente esse conjunto de significados que interessa a João Emanuel Carneiro em “Mania de Você”, nova novela das nove da TV Globo – trama que, portanto, foge à interpretação afetuosa e sexy que Rita Lee empresta ao termo da faixa-título do folhetim.
“É uma história que partiu de uma ideia de pessoas obcecadas pela ideia de amar alguém. Uma quadra de personagens em que um ama o outro, que ama o outro, que ama o outro. Até onde levar uma paixão? É sobre isso essa história”, explicou o autor em entrevista a O TEMPO, à época do lançamento. “É uma história sobre paixão e obsessão amorosa. O Mavi (personagem de Chay Suede) tem essa obsessão, essa ‘mania de você’, pela Viola (Gabz); a Luma (Agatha Moreira) tem essa ‘mania de você’ pelo Rudá (Nicolas Prattes); a Viola tem essa ‘mania de você’ pelo Rudá também. A novela aborda essas obsessões e como eles (os personagens) vão levar isso ao longo da história. São jovens bastante únicos e obcecados”, completou.
O quarteto, aliás, não é o único a ter comportamentos pautados por um viés obsessivo: Molina, vivido na trama por Rodrigo Lombardi, também parece ter um “apego excessivo a uma ideia”, a de controle, que direciona todas suas movimentações. Por isso, ele monitora, com uso de equipamentos de tecnologia, os passos de Luma, que pensa ser sua filha, e de Viola, que passa a desejar – em um sentido puramente sexual, não afetivo.
A atitude do vilão da história, explica a defensora pública Silvana Lobo, coordenadora da Escola Superior da Defensoria Pública de Minas Gerais, pode ser enquadrada no crime de stalking. “Nessa situação, é possível se tratar do crime previsto no artigo 147-A do CP (Código Penal), desde que a pessoa perseguida tenha ciência do ocorrido e, ainda, é importante mencionar que são características da perseguição: a invasão de privacidade da vítima; a repetição de atos; o dano à integridade psicológica e emocional da vítima; a lesão à sua reputação; a alteração do seu modo de vida; e a restrição à sua liberdade de locomoção”, descreve.
“Assim, se a conduta – do pai, do próprio marido ou de qualquer outra pessoa – tiver essas características em relação à vítima, aí, sim, é possível se considerar stalking”, detalha. “Mas, se a vítima sequer tem ciência de que estes atos de observação estão ocorrendo, não lhe acarretando qualquer constrangimento, os atos observatórios ainda estariam na esfera de uma preparação e, portanto, impuníveis”, pondera a advogada.
O que diz a psicologia sobre o amor obsessivo
Do ponto de vista da psicologia, as atitudes de outros personagens também podem ser interpretadas como a de um stalker, ou perseguidor, que, por vezes, pode se ver ou parecer apenas um “romântico clássico”, alguém visto até mesmo como exemplarmente cuidadoso com o outro, mas que, na verdade, apenas externa um apego excessivo e controlador. É o que explica o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, especializado no atendimento a casais e famílias.
“A motivação para o comportamento de perseguir ou “stalkear” o outro pode ser diferente de caso para caso”, aponta, lembrando que o sentimento de posse pelo outro certamente está presente no comportamento perseguidor. Citando um trecho de “Grande Sertão: Veredas”, clássico literário de João Guimarães Rosa, que já definiu o amor como “a gente querendo achar o que é da gente”, o psicólogo aponta que amar é, sim, desejar intensamente, é querer aquela pessoa ou coisa, ou mesmo fantasia para si. Contudo, ele ressalva que o amor saudável, maduro, separa o desejo de possuir do comportamento de possuir. “A pessoa quer o outro, mas sabe que o outro não é dela. Essa consciência, inclusive, enriquece o amor, equilibra a relação. As pessoas são livres, ninguém é dono de ninguém. O perseguidor não faz essa separação. Comporta-se de forma infantil, imatura, como se o desejo de possuir o autorizasse a possuir de verdade”, compara.
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Mendonça recorre também a postulados do psicólogo norte-americano Reid Meloy, que escreveu um livro sobre a psicologia do stalker, para definir os perfis psicológicos dos perseguidores. “Por exemplo, o ‘carente de afeto’ persegue porque acredita que a pessoa perseguida é a única que pode preencher o seu vazio emocional. O ‘cortejador incompetente’, por outro lado, persegue porque acredita que uma hora despertará o desejo do outro, mas não percebe sua incapacidade para se relacionar adequadamente. O ‘predador’ persegue porque se excita com o sentimento de poder sobre o outro, quer a relação com o outro dominado, amedrontado, incapacitado de se defender”, descreve em apontamentos que, certamente, fazem os espectadores da trama não só reconhecerem seus personagens, como, também, podem fazer lembrar situações da vida real.
E há ainda um último perfil, que, a partir dos próximos capítulos, deve ser encarnado por Mavi: “O ‘ressentido’ persegue porque quer se vingar do outro que o fez sofrer, quer fazer o outro pagar”, aponta, arrematando que, em todos os casos, o comportamento perseguidor revela uma imaturidade, uma fixação em um ponto do desenvolvimento pessoal. “A pessoa não aceita perder ou não possuir o outro e não consegue seguir em frente”, comenta.
Vulnerabilidade e cultura
Rodrigo Tavares Mendonça explica que pessoas com dificuldades para se relacionar estão mais vulneráveis a se apegar patologicamente ao outro. “Essa dificuldade pode fazê-las acreditar que não conseguem encontrar outra pessoa ou construir uma relação de intimidade semelhante. Acreditam que estão diante da sua única chance de construir uma relação amorosa, o que pode facilitar o comportamento perseguidor ou mesmo outros tipos de violência”, avisa.
Para o psicólogo, a cultura tende a facilitar o aparecimento de comportamentos perseguidores por normalizá-los. “A cultura molda os desejos das pessoas. Uma pessoa que acredita que o outro é a metade da sua laranja, por exemplo, que os dois estavam destinados a se encontrar na vida, pode apresentar uma dificuldade grande se acontece uma separação. Geralmente, a crença em um único amor pode tornar a separação insuportável. Acredito que entender que a relação amorosa foi construída e que se é capaz de construir uma nova relação amorosa é o melhor caminho”, sinaliza.
“As pessoas precisam ligar o sinal de alerta se percebem comportamentos de posse emitidos pelo outro. Pode parecer romântico inicialmente, mas esse tipo de comportamento costuma crescer se não cortado no começo”, adverte o psicólogo, que prossegue dizendo que uma coisa é sentir o desejo intenso do outro por você, outra é permitir que esse desejo comece a controlar a sua vida. “O comportamento de possuir pode existir saudavelmente na fantasia, especialmente a sexual, mas na realidade é perigoso. É preciso distinguir essas duas dimensões. Não aceitar brincadeiras ou pequenas proibições que mostram que o outro está se comportando como se fosse o seu dono na realidade”, aconselha, em tempo de sugerir que esse tipo de comportamento seja cortado no início, pois, como ensina o ditado: onde passa um boi, passa uma boiada.