Transtorno

Dependência emocional: pode parecer (só) amor, mas é (também) cilada

Especialistas explicam que vínculo doentio tem raízes multifatoriais e, por conta do ideal de amor romântico, é de difícil identificação


Publicado em 24 de fevereiro de 2021 | 03:06
 
 
 
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Foram dois anos de um namoro tumultuado, com tantas idas e vindas que Anne*, 29, já perdeu as contas. Dos três episódios de violência física, contudo, ela se lembra bem. Recorda-se também da sensação de culpa e de preocupação que nutria a cada nova briga, mesmo nas ocasiões em que foi agredida. “Todas as vezes que isso aconteceu, ele estava sob efeito de álcool e de outras drogas. Por isso, ficava tensa, pensando que poderia se envolver em alguma confusão ou sofrer algum acidente. Só torcia para que ele chegasse vivo à casa dele”, comenta. Apesar de ter consciência de que estava em uma relação abusiva e de não faltarem motivos para pôr fim àquela história, a auxiliar administrativa de uma empresa do ramo de educação não conseguia se afastar do companheiro, algo que só aconteceu após um episódio dramático. 

Em dezembro, feliz após mais uma reconciliação, o casal decidiu viajar para a Bahia, onde passariam o feriado de Natal. Entretanto, no trajeto, foram parados por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Foi quando Anne, que garante não fazer uso de substâncias ilícitas, descobriu que o seu então parceiro, sem tê-la consultado, levava consigo entorpecentes sintéticos. Presa sob acusação de tráfico de drogas, só um mês depois daquele duro 23 de dezembro ela reconquistou o direito à liberdade. E só agora consegue identificar com clareza que havia estabelecido com o hoje ex-namorado um vínculo patológico de dependência emocional, um quadro clínico do Transtorno de Personalidade Dependente (TPD), em que uma pessoa projeta expectativas no outro, dependendo dele para se sentir completa, feliz e capaz.

Embora o tema seja um tanto comum e receba vasta atenção popular, sendo tratado em livros, filmes e programas de televisão, em geral sob um viés romanceado e idealizado, não há, atualmente, uma estatística consensual sobre a incidência da patologia. Uma revisão literária feita em 2016, que reuniu estudos feitos entre os anos 2000 e 2014, listou que, enquanto alguns pesquisadores indicam que 5% da população já teria passado por uma experiência de dependência emocional, outros apontam que até 24,5% já enfrentaram esse tipo de situação.

Em parte, essa variação se explica pela dificuldade de se delimitar o transtorno, que é abrangente e pode ocorrer em relações amorosas, parentais, de amizade ou em qualquer outro contexto, como explica a psicóloga Leni de Oliveira. Coordenadora do Núcleo de Psicologia Seu Lugar, ela lembra que esse tipo de vínculo mantém os sujeitos um tanto infantilizados, com estruturas psíquicas fragilizadas, e gera grave comprometimento da autoestima.

Além disso, não é fácil que as pessoas, sem ajuda externa, se percebam nessa condição, o que contribui para a ausência de estatísticas confiáveis sobre a patologia. E, em geral, é difícil dar um fim há qualquer enlace, mesmo se não houver traços de dependência. Aliás, até amores platônicos costumam exigir esforço para serem superados.

“Os traços de comportamento do dependente se misturam com padrões de comportamento do amor romântico”, examina o psicólogo e sexólogo Rodrigo Torres. Logo, episódios de ciúmes, por exemplo, são vistos como manifestação de afeto e bem-querer, ou a superproteção dos pais entendida como apenas algo habitual, observa ele, lembrando que é possível identificar que há um problema quando há evidências de prejuízo emocional para um ou para todos os envolvidos.

No divã. “Na rotina clínica, é bastante comum receber pessoas reproduzindo padrões de dependência emocional. Um dos casos clássicos são as mulheres que trabalham para sustentar a casa e continuam se submetendo a maridos violentos porque acreditam que são responsáveis por suas perdas de controle ou pais e mães que atrapalham os casamentos de filhas e filhos por acharem que ninguém presta para seus ‘bebês’”, detalha Leni de Oliveira. “O outro é visto como alguém incapaz de viver sem mim, mas será que na verdade eu que não consigo viver sem ele? Por isso a simbiose, não dá para saber onde começa ou termina, os atores se alternam nas posições de dependente emocional, é como se estivessem colados”, acrescenta.

Prejuízos compartilhados. Rodrigo Torres sinaliza que, geralmente, a dependência emocional prejudica a todos. “Haja vista que, nessas situações, não se permite que o outro possa ser livre para ir e vir, e todos os envolvidos são mantidos presos em um jogo de controle, poder e dominação”, diz. Ele indica que essas relações costumam estar associadas a um clima de tensão, em que a chantagem emocional é recorrente.

Tratamento. Alinhado ao que indicam estudos sobre o transtorno, Torres informa que a psicoterapia cognitivo-comportamental tem se mostrado bastante eficaz no tratamento de dependência emocional, “pois trabalha a relação do sujeito em sofrimento com a própria autoestima, com as crenças a respeito de si mesmo e em relação ao outro, com os pensamentos sabotadores e com os pensamentos disfuncionais”, garante. “O fortalecimento do ‘eu’ de quem depende é fundamental para que o jogo se desfaça”, complementa.

Atualmente, Anne, cuja história abre esta reportagem, recorre ao expediente para superar o problema. Ela nota que há questões relacionadas à sua própria história que contribuíram para que desenvolvesse a dependência. “Perdi meu pai aos 20 anos. Desde então, cuido da minha mãe, que possui comorbidades psiquiátricas e metabólicas e que é dependente da minha assistência. Quando conheci ele, me senti cuidada pela primeira vez. Além disso, percebo, hoje, que meu ex-companheiro, em alguma medida, supria a ausência da figura paterna”, relata.

Transtorno tem origem multifatorial

“O modo como as relações amorosas são retratadas na mídia e na literatura reforçam os padrões patológicos da dependência emocional. Dessa forma, os fatores culturais, muitas vezes, levam os indivíduos a almejar relacionamentos dependentes ou, então, quando os vivem, acreditam que esta dependência seja normal”, informam Denise Catricala Bution, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/USP), e Amanda Muglia Wechsler, do Centro Universitário Unifafibe, que assinam uma revisão literária sobre a patologia.

As pesquisadoras detalham que, apesar da grande influência cultural no desenvolvimento e manutenção do transtorno, há evidências de que a dependência emocional deve ser entendida como multifatorial, sendo influenciada também por fatores neurológicos e psicológicos.

“Pesquisas recentes têm investigado sobre as bases neurológicas do amor, encontrando que estas se assemelham aos mecanismos envolvidos na utilização de substâncias psicoativas. Por outro lado, a vivência familiar e os estilos de apego aprendidos também contribuem com a dependência emocional”, anotam, acrescentando que os estilos de apego aprendidos durante a infância tendem a ser repetidos na idade adulta, sendo predominante na dependência emocional o apego preocupado e o apego ambivalente. “Em ambos, é predominante a visão negativa de si mesmo e a positiva de outros. Indivíduos com esses padrões de apego apresentam maiores índices de culpa em situações de rejeição social e cuidados e envolvimento excessivo com o outro”, avaliam.

Os comportamentos autodestrutivos e as comorbidades também parecem fazer parte do quadro de dependência. “Deste modo, a dependência emocional pode estar associada a transtornos alimentares, transtornos ansiosos, somatizações e depressão. Além disso, aumentam as chances de o indivíduo cometer suicídio, que ocorreria na tentativa de impedir o abandono por parte do parceiro, mostrando sua vulnerabilidade, impulsividade e baixa tolerância à frustração, características próprias dos dependentes emocionais”, expõe Denise e Amanda com base no conjunto de estudos analisados.

Perfil. Se ainda faltam estatísticas sobre dependentes emocionais, o perfil dessas pessoas parece já estar bem delineado, sendo descritas como “submissas, com dificuldades de tomar decisões em seus relacionamentos, sentindo-se responsáveis por todos os acontecimentos e centrando-se completamente em sua relação”. “Assim, tendem a prestar cuidados excessivos ao outro e resolver os seus problemas, mesmo que isso implique se autonegligenciar”, aponta a revisão publicada pela revista eletrônica “Estudos Interdisciplinares em Psicologia”, da Universidade Estadual de Londrina. 

Gênero. Além disso, embora o gênero não pareça interferir na ocorrência da patologia, aparentemente as manifestações da dependência são muito distintas quando ocorrem em homens ou em mulheres. “O dependente emocional tende a ser possessivo e tem medo de ser abandonado, além de ser mais impulsivo e ciumento. Portanto, no caso dos homens, ao perceberem algum perigo em sua relação, seja ele real ou imaginário, podem tornar-se violentos e abusar de suas parceiras. No caso das mulheres, que geralmente são apontadas como vítimas, a dificuldade de término de relacionamento ocorre pelo medo de ficar sozinha e pelo sentimento de estar atada à relação”, sinalizam as autoras Denise Bution e Amanda Wechsler.

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