Se você cresceu numa era em que os smartphones ainda não existiam, é bem provável que tenha guardado na memória alguns números de telefones: o da casa em que vivia quando era criança, o contato de um parente próximo ou até mesmo o número de um primeiro amor. A história fica um pouco diferente, porém, quando os contatos a serem lembrados se inserem num contexto mais atual. Com os celulares na palma das mãos, ter datas de aniversário, contatos de telefone e até mesmo outros dados guardados na memória não é algo tão comum. 

Embora acessar uma infinidade de informações tenha se tornado mais fácil, encontrá-las na ponta dos dedos tem causado impactos no cérebro, principalmente na memória. Essas consequências ganharam até um nome: amnésia digital. Segundo o neurocirurgião Felipe Mendes, esse fenômeno pode ser explicado como a tendência de esquecer ou não memorizar dados que consideramos facilmente acessíveis por meio de dispositivos digitais, como smartphones e computadores. “Ao depender deles para armazenar informações, o cérebro reduz o esforço cognitivo de memorização. Em termos neurobiológicos, a repetição e o esforço ativo na memorização são fundamentais para o fortalecimento das conexões sinápticas e, consequentemente, para o armazenamento de dados na memória de longo prazo”, explica.  

O psiquiatra Bruno Brandão faz uma comparação com o mundo antes da popularização dos smartphones para pontuar como a diferença no nosso comportamento afeta o funcionamento do cérebro. “Antigamente, por exemplo, quando não existia essa agenda de telefones no celular, isso fazia com que a gente forçasse a mente a armazenar números de telefone. A gente tinha que memorizar o endereço, o caminho, as ruas, as datas importantes. Tínhamos a nossa cadernetinha ali, e isso fazia com que estivéssemos sempre exercitando o nosso cérebro. À medida que começamos a externalizar essa função, deixamos de consolidar essas informações em nossa memória de longo prazo”, explica o psiquiatra, lembrando que, como o nosso cérebro é econômico, ele tende a evitar gastar energia e armazenar informação que não é importante para ele. “Então, à medida que pregamos esse hábito de externalizar nos aplicativos, nos telefones, as coisas que antigamente eram feitas no cérebro, ele começa a ficar um pouco preguiçoso. E essa dependência de aparelhos eletrônicos, invariavelmente, vai levar a um prejuízo na nossa capacidade de memória”.  

Uma pesquisa desenvolvida pela Kaspersky Lab, empresa russa especializada na produção de softwares de segurança na internet, demonstrou como isso tem acontecido na prática. Após entrevistar 6.000 consumidores a partir de 16 anos, o estudo apontou que a maioria dos participantes conseguia lembrar o número do telefone da casa onde morava quando tinha 10 anos, mas não o de seus filhos (53%) ou do local onde trabalhavam (51%) sem antes consultar o seu dispositivo digital. Cerca de um terço dos entrevistados não conseguiu ligar nem para o namorado ou namorada usando apenas a memória.  

Extensão da memória. A situação vai além dos números de telefone: a pesquisa também apontou que quase metade dos proprietários de smartphones entre 16 e 34 anos de idade e 40% das pessoas entre 35 e 44 anos reconheceram que seus telefones têm quase tudo o que precisam saber ou lembrar. A grande maioria dos participantes (79,5%) admitiu usar a internet como uma extensão do seu cérebro. Quando têm alguma dúvida, 57% disseram que tentam lembrar a resposta primeiro. No entanto, 36% procuram a resposta online antes de tentar qualquer outra medida.  

Mas essa extensão da memória ao mundo digital também causa outros impactos. “Especialistas também já têm identificado comportamentos disruptivos, distúrbios de sono, maior falta de foco, impaciência e aumento da agressividade. São transtornos ansiosos, depressivos e compulsivos relacionados ao uso dos dispositivos eletrônicos”, pontua a neurologista Paulyane Gomes.  

Ela acrescenta a preocupação com o uso desses aparelhos durante a infância. “Alguns estudos científicos mostraram que o tempo de tela, principalmente na infância, está associado ao desenvolvimento prejudicado das habilidades sensório-motoras, resolução de problemas e aquisição da linguagem, menor vocabulário e menor capacidade de compreensão de leitura e de autorregulação, além de retenção superficial de informações, dificuldade de memorização de longo prazo e desempenho acadêmico”, lista.  

Excesso de informação afeta memória e atenção 

Mas o fácil acesso às informações não tem sido o único “culpado” quando o assunto é o cérebro. A quantidade de dados aos quais estamos expostos também tem causado impactos negativos. “O excesso de informações a que estamos expostos diariamente pode levar a uma sobrecarga cognitiva, dificultando a capacidade do cérebro de processar e armazenar novas informações. Essa sobrecarga pode, além de impactar a memória, prejudicar o aprendizado e outras funções cognitivas, como a atenção e o raciocínio”, destaca o neurocirurgião Felipe Gomes.  

Para se ter uma ideia da quantidade de informação com que o cérebro tem contato, o neurocirurgião conta que a estimativa é que diariamente sejamos expostos a cerca de 74 gigabytes de dados – que é o equivalente a 16 filmes, à leitura de mais de 200 mil palavras ou a ficar no TikTok por 200 horas. Todo esse conteúdo também pode causar o que é chamado de “fadiga cognitiva”, que faz com que a capacidade de focar e reter informações seja significativamente reduzida.  

O psiquiatra Bruno Brandão acrescenta que a sobrecarga de dados também pode afetar o aprendizado. “Quando o cérebro é constantemente bombardeado de informações, ele tem dificuldade de priorizar e consolidar o que realmente importa. E isso vai dificultar a retenção de conhecimento. Nunca se leu tanto como agora, mas a gente lê fragmentos de informação. A gente não tem aquela informação mais sólida, mais elaborada. E isso gera um impacto muito negativo no aprendizado”, conclui.