“Eu adio as coisas e continuo adiando. Digo ‘vamos fazer isso ano que vem’, mas quando o ano chega, digo ‘vamos fazer ano que vem”. A frase é de Margaret, personagem de Robin Wright no filme “Aqui”, de Robert Zemeckis, que ela protagoniza ao lado de Tom Hanks, como Richard. Na trama, o casal convive com o constante adiamento dos sonhos, atropelados por circunstâncias do dia a dia. Margaret, por exemplo, quer ser advogada, mas deixa a realização em suspensa, dedicando-se, primeiro, ao objetivo de constituir uma família. Já Richard, detido pela necessidade de alcançar estabilidade financeira, renuncia a suas aspirações artísticas.
Um enredo que ressoa um desafio comum a tantas outras pessoas, que, por vezes inconscientemente, precisam se equilibrar entre os sonhos e as demandas inadiáveis do dia a dia, ao mesmo tempo que lidam com os efeitos do constante adiamento de seus sonhos.
Esse constante adiamento pode ter relação, na avaliação do psicólogo e psiquiatra Danty Marchezane, com a procrastinação. “Geralmente, existe algo operando no nosso psiquismo para que a procrastinação – que não envolve apenas pequenos comportamentos – ocorra”, examina, lembrando que o nosso aparelho mental não está separado do que experimentamos em sociedade. Daí, por exemplo, que um sonho pode ser adiado porque não se adequa ao que apregoa o discurso social em voga.
“Os prejuízos (desse insistente deixar para depois) são muito grandes”, reconhece o profissional da saúde, sublinhando que, para começar, o sujeito vai precisar lidar com a angústia de não conseguir realizar seus objetivos de vida. “E ela começa ter um empobrecimento muito grande da sua qualidade de vida, tendo uma vida menos feliz”, avalia. E, ao se dar conta do que parece ter sido um tempo perdido, é comum que o sentimento de culpa apareça, o que pode gerar uma atitude ruminativa de autoexpiação.
“Não tem uma forma fácil de lidar com essa sensação. Como lidar com a culpa de algo que não fizemos? Primeiro, precisamos entender a dor da perda, e aceitar que aquilo passou e não vai mais voltar. Mas isso pode levar tempo: dias, semanas, meses ou, talvez, anos”, reconhece.
Ele prossegue indicando que a pessoa que não consegue se movimentar rumo a seus sonhos pode, naturalmente, ser caracterizada por essa sensação de paralisia. “O mais interessante é pensar que isso pode ser um sintoma. Ou seja, esse adiamento pode envolver outros fatores psíquicos que estão exercendo influência na vida daquela pessoa. E geralmente não é sobre conseguir ou não alcançar alguma realização, mas, sim, sobre ela estar presa a um sintoma que a impede de realizar o que ela deseja”, reflete.
Marchezane reconhece ser difícil apontar uma estratégia de enfrentamento do hábito de procrastinação que funcione geral e universalmente. “Esse tipo de acontecimento é da ordem de um tipo de subjetividade muito específica de cada um. Então, eu acho que a melhor estratégia é construir sua própria estratégia, procurando se conhecer dentro daquilo que te faz se sentir bem. É buscar um conhecimento sobre si que possibilite alcançar autonomia sobre sua vida e seus atos”, completa.
Lidando com as contingências
Os adiamentos, é verdade, por vezes são inevitáveis diante das contingências que estão para muito além do nosso controle. Caso, por exemplo, dos brasileiros deportados dos Estados Unidos após o endurecimento das políticas de imigração do recém-iniciado governo do republicano Donald Trump. “As pessoas têm apreensão porque é um sonho que pode ser interrompido. Eu vim com um sonho igual. Mas as pessoas não devem entrar em pânico nem desespero. Torço para que todo mundo realize seu sonho”, refletiu Flávia Braga em entrevista ao portal “G1”. Ela chegou aos Estados Unidos em 1999 e, hoje, é cidadã norte-americana.
Para a psicóloga clínica Sônia Eustáquia, a compreensão de que, por vezes, não temos controle sobre aquilo que havíamos planejado é entendida como fundamental, nos ajudando a reformular rotas e adiar projetos. A especialista ainda alerta que forçar que um plano se desenrole mesmo em um ambiente que concorre contra ele tende a ser mais desgastante e frustrante que deixar de realizá-lo naquele momento.
Nem sempre, porém, essa decisão será fácil. Sobretudo em uma sociedade que costuma exaltar a força de vontade como determinante para que objetivos sejam alcançados e supervaloriza a performance individual e cobra por resultados, ignorando, muitas vezes, contextos e singularidades de cada vivência e situação. “Muitas pessoas se culpam quando se dão conta de que não vão conseguir alcançar aquele objetivo pelo qual vinha trabalhando, mesmo que esse impedimento fuja do seu controle, como no caso da pandemia”, destaca Sônia, assegurando que esse excesso de responsabilização é muito nocivo individual e coletivamente.
A especialista aponta que, quando a situação não é bem elaborada, a sensação de frustração tende a ser maior. Isso contribui para que momentos de crise – sanitária, social, política ou financeira – favoreçam a manifestação de distúrbios e transtornos de ansiedade e de humor, além de levarem ao crescimento de queixas e doenças psicossomáticas. Ela ainda alerta que outro efeito colateral do adiamento é o abandono do projeto. “Se a pessoa fica muito decepcionada, pode se sentir desmobilizada e paralisada, chegando a abandonar sonhos que, mais para a frente, poderiam ser concretizados”, diz.
“Para evitar esses problemas, o ideal é que esses planos sigam sendo alimentados, mesmo quando adiados. Se a pessoa entende que está pisando no freio, refazendo a rota, vai entender que continua trilhando o percurso que, mesmo que tenha se tornado maior, vai levar ao seu sonho”, sugere. A espera maior, portanto, pode ser usada para que o sujeito se prepare melhor para o que está por vir. “Se é uma viagem, poderá se planejar mais para conhecer aquele destino; se comprar um carro, poderá investigar melhor quais os melhores modelos para ela”, cita.