Em cidades grandes ou pequenas, no interior ou no litoral, no centro ou nas periferias: em qualquer lugar que seja, como um elemento quase universal na cartografia urbana, estão lá os pontos de pegação. Lugares onde anônimos se encontram para o sexo casual ao ar livre, uma prática chamada popularmente de “cruising”, e que, com as redes sociais, se tornaram mais facilmente identificáveis.
Não é de hoje, aliás, que alguns destes locais se firmaram como rotas extra-oficiais do prazer. Destinos que, geralmente no cair da noite, por uma série de fatores, parecem ter sido eleitos informalmente como o lugar ideal para esses furtivos encontros.
Entre o fim do ano passado e o começo deste ano, a prática causou reboliço nas redes sociais quando começou a circular um vídeo de um grupo de homens fazendo sexo em um desses destinos – no caso, o Arpoador, no Rio de Janeiro. O episódio ficou conhecido como “Surubão do Arpoador” e, além de animar os debates nas plataformas digitais, inspirou uma tela do artista visual mineiro Charlles Cunha e alimentou o desejo de repressão policial em uma, ainda infrutífera, tentativa de identificar envolvidos – segundo o artigo 233 do Código Penal Brasileiro, praticar ato obsceno em local público, aberto ou exposto ao público é crime, com pena de três meses a um ano de detenção ou multa.
Algumas semanas depois, outro vídeo, desta vez em uma praia de Búzios, envolvendo cerca de 15 pessoas, voltou a trazer o assunto à tona. Entre as reações mais inflamadas, houve quem creditasse a prática a uma “degeneração” dos nossos tempos. Nada mais enganoso: na arqueologia do erotismo, comportamentos similares já foram registrados em diversas culturas e períodos históricos, como explica Uno Vulpo, médico, redutor de danos e um estudioso do mundo do sexo e das drogas. Ele cita, como exemplo, o caso Vere Street Coterie, quando, por volta de 1800, um grupo de homens foi preso por sodomia em Londres.
Hoje, explica o pesquisador, o cruising é entendido como uma prática sexual que consiste na busca de encontros sexuais em locais públicos, geralmente envolvendo desconhecidos. “Historicamente, está mais relacionado ao universo gay, mas também existem registros de diferentes perfis populacionais adeptos”, menciona.
Essa associação com homens gays e bissexuais tem a sua razão de ser. “Esses encontros eram uma alternativa para aqueles que buscavam ter relações sexuais com outros homens, mas não podiam fazê-lo nas suas casas, por terem famílias heteronormativas, ou mesmo em motéis, onde também podiam ser recriminados em períodos de grande vigilância homofóbica”, examina. Para a satisfação do desejo, na ausência de espaços seguros, restavam lugares como ruas escuras, parques e as praças esvaziadas – um obstáculo pela falta de abrigo que jovens heterossexuais, mesmo vivendo com seus pais, dificilmente encontraria.
Aspectos históricos e culturais também ajudam a compreender o porquê do cruising orbitar, principalmente, o universo masculino. “A sexualidade dos meninos, desde bem pequeninos, é sempre muito pública e explícita, o que se estende para suas vidas adultas – enquanto homens. Tomemos como exemplo uma situação simples e corriqueira do nosso dia a dia: se saímos com um menino pela rua e este nos pede para fazer xixi, não hesitamos em baixar suas calças, permitindo que ele urine ali mesmo”, cita Sandro Santos, doutor em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em uma entrevista para O TEMPO, em que refletia sobre o tema da educação sexual.
“Entretanto, não fazemos isso com as meninas, nem de maneira negociada. Procuramos de modo tão breve quanto o possível, o banheiro mais próximo para que, no âmbito da reserva de seu corpo, ela satisfaça essa necessidade humana”, complementa, apontando como as meninas são educadas a serem mais castas – o que também tende a se estender em sua vida adulta, enquanto mulheres.
Fetiche
A perspectiva de encontrar no cruising uma abertura para a expressão da sexualidade, sobretudo entre homens, aparece como um registro de memória de um personagem do filme “Baby”, do diretor mineiro Marcelo Caetano, atualmente em cartaz no Cine Belas Artes, em BH.
Na obra rodada em São Paulo – que venceu o prêmio principal da 26ª edição Festival do Rio e foi reconhecida como Melhor Filme LGBTQIA+ no Festival de Lima, no Peru –, em um momento de desabafo, um homem de cabelos grisalhos recorda como, quando era casado com uma mulher, reprimindo a própria identidade, só encontrava “na pegação” o espaço para dar vazão a seus desejos.
Mas seria reducionista condicionar a prática a apenas uma “válvula de escape”. “Com o tempo, fomos compreendendo que se trata também de uma tara, já que muitas pessoas têm vontade de se relacionar sexualmente em locais onde poderiam ser encontradas de surpresa e com pessoas anônimas, que possivelmente não encontrarão novamente – e é nesse contexto que, muitas vezes, o cruising resiste hoje, já que as pessoas gay já têm locais de encontro e não são mais recriminadas em motéis”, observa Uno Vulpo.
“Fora isso, o comportamento também pode representar uma busca por sexo que não seja atrelado a vida pessoal, já que, quando você busca essa experiência, quem vai te encontrar não vai querer saber sobre a sua vida, sobre quem você é”, assinala, destacando que a despersonalização, em um quase pacto de silêncio onde as trocas de olhares falam por si, é um aspecto importante para muitos adeptos.
Esse conjunto de códigos específicos do universo cruising foi registrado no filme “Parque de Diversões”, com direção do mineiro Ricardo Alves Jr., também em cartaz no Cine Belas Artes, em BH. A produção, gravada no Parque Municipal, que já foi um dos principais pontos de pegação na capital mineira antes de ter sido cercado com grades, apresenta uma coreografia erótica, em boa medida explícita, com raríssimos diálogos.
Nos 73 minutos do longa – que recebeu os prêmios de Melhor Filme na Mostra Autorias, na Mostra de Cinema de Tiradentes, pela Abraccine, e Melhor Filme de Ficção no Barcelona Queer Film Festival –, ninguém se apresenta, diz seu nome, se tem família, profissão. E quem está ali, quem topa participar, aceita também esse pacto de distanciamento, de suspensão das identidades. O que importa é puramente o sexo, em toda sua diversidade.
Dogging
Possivelmente uma derivação do “cruising”, o “dogging” é outra modalidade de sexo em espaço público, que também pode ser associada ao voyeurismo e exibicionismo, mas com um componente extra: neste caso, a transa acontece principalmente em um carro. Há mais diferenças. No primeiro caso, por exemplo, é mais comum que homens sozinhos busquem um ou mais desconhecidos para o sexo, já no último, são casais, geralmente heterossexuais, que buscam explorar sua sexualidade enquanto convivem com o risco de serem flagrados.
Em comum, assim como no cruising, no dogging também existe uma gramática que os adeptos reconhecem facilmente, mas passa despercebida por outras pessoas. “Nesse tipo de situação, é incomum e indesejado que as pessoas verbalizem o que querem. Por isso, elas recorrem a outra forma de linguagem, emitindo sinais do que estão buscando naquele momento”, explica Victor Hugo de Souza Barreto, doutor em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Se o casal deixa a porta aberta ou sai do veículo, está mais disposto a interações com quem está assistindo. Se a porta está fechada, mas a luz interna está acesa, é porque querem ser vistos. Com a janela aberta, sinal que toques são aceitos. Já piscar o farol é um pedido ou uma autorização para que os outros se aproximem”, complementa o pesquisador, que estuda práticas sexuais consideradas de risco e seus desafios para as políticas públicas de saúde.
Saúde
Do ponto de vista do cuidado com a saúde, Uno Vulpo cita que as recomendações são as mesmas já indicadas para quaisquer pessoas sexualmente ativas.
Quando o tema é prevenção a novas infecções pelo HIV, por exemplo, fala-se hoje na “Mandala de Prevenção” ou “Prevenção Combinada”, método que inclui vários tipos de intervenção. “Esta abordagem é o conjunto de ações de prevenção ao HIV e também a outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). E esta nova abordagem abre um leque de escolhas para as pessoas”, descreve o médico infectologista Unaí Tupinambás.
Além do incentivo ao uso de preservativo, há, por exemplo, a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), destinada a pessoas que têm um risco aumentado para a infecção pelo HIV, chamadas de população chave, conforme explica o infectologista. Ele detalha que o método pode ser contínuo, com o indivíduo tomando um comprimido por dia, ou sob demanda, quando os comprimidos são tomados apenas no período em que a pessoa vai manter relação sexual. “O método é seguro e também eficaz na prevenção ao HIV”, detalha, lembrando que desde novembro, o PrEP está disponível em todas as Unidades Básicas de Saúde do SUS em Belo Horizonte.
Já a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) é usada após exposição de risco, em casos de estupro, quando a camisinha rompe ou mesmo após acidente profissional com material biológico, por exemplo.