Em um aplicativo público de gestantes, uma usuária anônima deixou seu desabafo: ela estava grávida de 6 meses e, “convencida” pelo marido, aceitou ir a uma casa de swing para que ele pudesse observá-la durante o ato sexual com outros homens, realizando, assim, a fantasia dele. Essa não foi a primeira vez, mas ela gostaria que fosse a última. No relato, ela afirmou que não sentia prazer, nem era uma situação confortável, mas que sempre voltava a aceitar por medo de perder o parceiro.
Apesar de todas as camadas desse desabafo, ele não é um caso isolado. São inúmeras as situações que, em nome do prazer alheio, pessoas se prestam a fazer coisas que não se sentem à vontade, como, por exemplo, enviar vídeos íntimos ou abrir a relação sob manipulação camuflada de chantagem emocional. Mas qual seria a diferença entre fetiche x abuso/agressão?
O psicanalista, psicólogo e sexólogo, Eduardo Oliveira, explica que o fetiche envolve um interesse ou uma excitação sexual por objetos. “Partes do corpo ou situações que, embora atípicas, são, digamos, exploradas de maneira consensual e segura entre as partes envolvidas. Já a agressão, ou abuso, ocorre sem consentimento e, geralmente, envolve a violação dos limites físicos, emocionais e psicológicos dos indivíduos, tendo uma imposição, digamos assim, de poder que pode causar danos duradouros”.
O especialista questiona, porém, se o consentimento seria suficiente para legitimar qualquer prática. “É preciso pensar que não é só a falta de consentimento, mas que tipo de consentimento. Que nível de conhecimento que foi consentido. Até nisso precisamos pensar, porque essa ideia pode estar deturpada ou com falta de informação suficiente para que haja um consentimento consistente na prática. Ou seja, eu sei exatamente os riscos que eu estou ali envolvido? Se não há essa essa clareza, alguém pode ser claramente manipulado. É um comportamento em que a pessoa faz com que a vítima comece a duvidar das suas próprias percepções. É um caminho fácil para o agressor chegar aos seus fins”, afirma.
A situação é ainda mais delicada uma vez que é comum a vítima do abuso não ter noção do que está acontecendo, como explica a psicóloga clínica Tatiana Freitas Wandekoken. Segundo ela, essa manipulação, que tem como objetivo alterar a percepção de uma pessoa sobre a realidade e sobre si mesma, sinaliza para uma possível violência psicológica.
“A depender do caso, é possível (e frequente) que uma pessoa permaneça dentro de uma dinâmica de abuso/violência durante anos sem sequer perceber que aquele relacionamento é violento/abusivo. Além disso, é importante pontuar que pesquisas indicam que a violência psicológica aparentemente precede outras formas de violência, embora ainda seja pouquíssimo compreendida tanto no senso comum quanto nas próprias produções científicas. É uma violência dificilmente percebida, nomeada e denunciada”, explica.
Como identificar
Segundo Tatiana, uma série de condutas comportamentais em conjunto podem servir como sinais de alerta que dão contorno à violência, mesmo que isoladamente elas não constituam uma dinâmica abusiva. “É a partir da visão do todo que caracterizamos uma relação como violenta”. No relacionamento, ela relata a sensação de estar “pisando em ovos” constantemente, em uma lógica de “tapas e beijos” (intensidade afetiva), estresse e tensão constantes.
No parceiro, é importante ficar atento ao comportamento de controle (econômico, emocional, físico e social) e isolamento. “Em muitos casos pode estar disfarçado de ‘cuidado’. Por exemplo, ‘eu quero saber a sua localização sempre porque me preocupo com você’ ou ‘eu não gosto que você saia com suas amigas porque elas não te fazem bem’”, cita a psicóloga, que também chama atenção para o ciúmes excessivo. “O sentimento do ciúmes em si não é um problema, mas a forma que a pessoa manifesta esse sentimento. Normalmente, há uma culpabilização da vítima sobre os sentimentos experienciados pelo agressor”.
Além disso, são red flags: comunicação agressiva, depreciação ou desvalorização, silêncio e afastamento como forma de punição, ameaças e invasão de privacidade. Diante desse contexto a vítima pode sentir confusão mental, sentimento de culpa excessiva, sintomas ansiosos, receio em compartilhar sua experiência com conhecidos, tristeza e isolamento.
O sexólogo Eduardo Oliveira também reforça para a questão do diálogo. “Acho um alerta quando a comunicação com a parceria sobre desejos e limites não é transparente ou quando há uma pressão de uma das partes para aceitar práticas desconfortáveis”. Outro ponto, seria uma certa inconsistência entre prazer e desconforto.
“Se a atividade que deveria ser prazerosa se torna fonte de dor física ou emocional sem o devido consenso e está ficando desconfortável, está mudando de prazerosa para não prazerosa, é um sinal. Sentimento de culpa ou vergonha excessivos também. A vítima pode sentir culpa, mesmo sabendo de forma inconsciente que algo não está certo na relação. Sabe esse pensamento de que alguma coisa está estranha… que tem algo estranho aqui”, comenta.
Limites e consentimento
Apesar de estranho à maioria das pessoas, até o BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) - conjunto de práticas, preferências e dinâmicas relacionadas a atividades sexuais ou eróticas - é baseado em princípios fundamentais como consentimento, comunicação clara e segurança. Desta forma, evita-se qualquer forma de abuso.
“Uma sessão BDSM começa com as negociações prévias em que falamos sobre nossos fetiches favoritos, desejos, curiosidades e limites. Com base nessa negociação a pessoa dominante (Top), vai planejar uma sequência de práticas fetichistas que serão prazerosas tanto pra ela quanto pra pessoa submissa (bottom). As sessões devem seguir as bases de segurança do BDSM, a principal delas é o SSC (São Seguro e Consensual) e logo no início o Top deve informar uma palavra de segurança ao bottom, que poderá ser dita a qualquer momento para interromper a sessão. As sessões são finalizadas com o aftercare, que é um momento de cuidar do nosso parceiro, conversar sobre o que rolou, dar carinho”, explica Lunna Queen, instrutora de práticas BDSM e produtora de eventos fetichistas.
Há 5 anos no ramo, ela esclarece que as negociações para realização de uma sessão são feitas geralmente por escrito, para que se tenha um registro do que foi conversado. “Normalmente o Top envia para o bottom perguntas sobre o que ele faria, o que não faria, quais seus interesses e curiosidades.” se a pessoa mudar de ideia, basta falar a palavra de segurança, que é um código para interromper as práticas.
A profissional do BDSM difere o fetiche da agressão. “No caso das práticas fetichistas é essencial que sejam respeitados os limites, as negociações prévias e as bases de segurança, principalmente o consenso. Já no caso das agressões, elas são impostas de forma abusiva ou através de alguma manipulação. Se uma pessoa não respeita os limites do parceiro e impõe esse tipo de prática, é na verdade um abusador e o ideal é se afastar o quanto antes.