Sexo e sexualidade

‘Pegging’: quando homens heterossexuais se abrem ao prazer anal

Cercada de tabus, prática é tachada como característica restrita a não heterossexuais


Publicado em 25 de junho de 2021 | 03:00
 
 
 
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Cercado de tabus, o sexo anal costuma aparecer com maior frequência em conversas do dia a dia na forma de palavrão e ofensa. O tema, apesar das diversas conquistas em relação à liberdade sexual e à sexualidade das últimas décadas, segue sendo evitado e, para muitos, soa embaraçoso ou até repulsivo – embora a prática seja bastante comum. É o que já indicava, em 2009, uma pesquisa do Instituto Datafolha. Segundo levantamento, 64% dos entrevistados, considerando as pessoas que já haviam se relacionado sexualmente, reconheceram já ter experimentado o ato. 

E se, em geral, o sexo anal já costuma ser visto como vexatório, há circunstâncias em que preconceitos se mostram ainda mais presentes em relação à prática. Estamos falando, por exemplo, do “pegging”, quando, em relações heterossexuais, o homem é penetrado pela mulher, que, normalmente, faz uso de uma cinta-peniana. 

Em uma encruzilhada de tabus, não é raro que o pegging seja associado a uma espécie de refúgio para “gays enrustidos”, como indica a sexóloga Lelah Monteiro. “Mas não tem nada a ver. Isso é um preconceito, que pode limitar (a experiência erótica) de um casal”, defende, lembrando que o prazer anal não é uma exclusividade de homens homo ou bissexuais. “Estamos falando de uma região que possui muitas terminações nervosas e que, naturalmente, é uma área com grande sensibilidade erógena. Não tem nada a ver com orientação sexual”, estabelece, ponderando que um homem não vai ser menos hétero ou menos cisgênero por gostar da estimulação ou da penetração anal. 

Lelah aponta que a modalidade pode ser um recurso para que o casal potencialize o orgasmo e apimente a relação, além de ser um instrumento para que eles conheçam melhor seus corpos. Por isso, a sexóloga acredita que, estando em uma relação, o assunto deveria ser posto. “Pode ser que seja um desejo comum do casal, mas que, por vergonha, nenhuma das partes revela”, situa, lembrando que o pegging não precisa ser sinônimo de uma dinâmica de “dominação”, em que o casal vai performar os papéis do submisso e da dominatrix.

A sexóloga adverte ser importante que os envolvidos estejam preparados, pois o reto e o intestino não possuem lubrificação natural, e, portanto, é essencial o uso de lubrificantes. A higiene dos brinquedos sexuais é outra preocupação. Recomenda-se, inclusive, o uso de camisinha na cinta-peniana. 

Adesão 

Ainda que tabus sobre o pegging persistam, a comunicóloga Ana Carolina Sanseverino Silva, que dirige a loja de acessórios sexuais Sob Sigilo, nota que mais casais têm se rendido ao desejo de explorar possibilidades de prazer erótico. “Apesar de demonstrarem curiosidade, o que ainda atrapalha é o mito de que, ao estimular o ânus, o sujeito se tornaria ‘menos homem’. Mas esse temor acaba caindo por terra com o tempo e com o aumento da intimidade”, garante ela, que diz receber diversos relatos de casais praticantes da técnica. “Muitos começaram com o beijo grego (em que há excitamento oral da região do ânus), depois vão recorrer ao dedo, até que brinquedos sexuais começam a ser utilizados”, detalha. 

Ana Carolina acredita que, para os homens, o prazer é o principal combustível na adesão à prática. Já para as mulheres, ela percebe outros componentes, para além da satisfação em potencializar o prazer de seu parceiro. “Eu acho que, no fundo, ainda temos em nós uma questão fálica muito forte, que associa o ato de penetrar ao poder. Algo culturalmente construído”, pontua. 

À luz da história, a análise faz sentido. Basta lembrar que, na Grécia e na Roma antigas, embora não existisse nenhum impedimento de que o homem utilizasse o ânus para o prazer em relações com uma mulher ou com outro homem, era esperado que ele exercesse sempre o papel de agente ativo. Sujeitar-se à passividade era algo lido como um sinônimo de ser subjugado, sendo essa uma dimensão reservada às mulheres, aos escravos e aos efebos.

“Essa associação (entre o poder e o falo) não se apagou e, agora, se encontra com o movimento de empoderamento da mulher. Então, além de satisfazer seus parceiros, essas mulheres entendem que estão no controle, que são poderosas, e isso também é algo prazeroso”, avalia. 

Vergonha

Para a fashion designer Joss Lauria, de 30 anos, um dos atrativos da modalidade é justamente essa sensação de poder. “Além disso, me sinto estimulada porque posso recorrer à prática para satisfazer os dois. É revigorante”, opina, lamentando que os estigmas em torno da prática tenham implicado em constrangimentos para ela. 

Joss lembra que, depois de uma transa em que fez o pegging, encontrou o então parceiro em uma roda de amigos. “Ele virou a cara para mim”, diz. “O pior é que vejo que essa atitude é comum. Até porque a sociedade ainda é extremamente machista e nega o prazer anal masculino, então é tudo feito às escondidas”, avalia, emendando que melhor seria se, para esse assunto, não tabus fossem rompidos.

“Sinceramente, muita gente perde a oportunidade de sentir sensações novas por causa do medo (de exposição e de retaliação)”, comenta. 

Gênero. Anteriormente, a modalidade era conhecida como “inversão”. Hoje, contudo, esse termo é evitado, pois não é necessário que os papéis de gênero sejam invertidos para que a dinâmica aconteça. 

Libera. Na primeira edição do Festival Brasileiro de Cinema de Comédia, o Fest Cômico, realizado neste ano, o pegging foi tema de uma das produções. Com humor, o cineasta Filipe Rossato estimula homens a explorarem a prática “com a namorada, esposa ou ficante casual” no curta-metragem “Libera, HT”. 

Preconceito médico. Segundo o antropólogo William J. Robertson, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, a postura de profissionais da saúde reforça o tabu do prazer anal de maneira geral.

Após analisar 147 publicações médicas sobre corpos estranhos no reto, ele demonstrou que era recorrente a associação entre essas ocorrências e práticas sexuais “pervertidas ou aberrantes”. Algo que, segundo o pesquisador, pode contribuir para que pacientes evitem buscar ajuda mesmo em situações emergenciais, como no caso do empalamento. 

Moralismo. Trata-se de um tabu que dialoga com uma leitura moralista do sexo. Conforme argumenta o psicólogo e terapeuta Paulo Tessarioli, mesmo na contemporaneidade, as expressões de desejo que se dissociam, simbolicamente, do ideal reprodutivo – isto é, em que há penetração do pênis na vagina – tendem a ser reprovadas.

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