Em 1988, a novela “Vale Tudo” galvanizou o país não só pela pergunta “quem matou Odete Roitman?”, mas também por retratar, em um produto de apelo popular, as tantas contradições brasileiras. Agora, com as refilmagens da obra, esses retratos são revisitados e atualizados. Em uma ponta, a nova Maria de Fátima, vivida por Bela Campos, já repetiu ser uma “mulher rica” que nasceu pobre – e ela age e gasta de maneira condizente com esse seu “eu” imaginário: o dinheiro da venda da casa da própria mãe, por exemplo, foi torrado em diárias em hotéis de luxo e roupas de grife. Tudo para sustentar um lifestyle que, na cabeça dela, poderia significar um passaporte para um novo padrão de vida. Em outra ponta, a elegante Celina, personagem de Malu Galli, vê a fortuna herdada do marido escorrer pelos dedos em um consumismo desenfreado, como a troca de todo mobiliário de sua mansão, enquanto fecha os olhos para a própria falta de recursos.
Nas telas, esse exagero vira meme, repercute e gera até identificação. Pudera. Fora delas, afinal, são fartos os relatos desses mesmos comportamento, que vem sendo chamado de “dismorfia financeira”. A expressão soa recente, mas o descompasso é antigo. Assim como a dismorfia corporal descreve uma percepção distorcida da imagem física, a dismorfia financeira indica a distância entre a realidade material de alguém e o modo como administra seu dinheiro.
O fenômeno pode surgir pelo excesso, com um consumismo que deságua em dívidas, ou pela contenção radical, quando o medo de gastar impede despesas básicas em saúde ou qualidade de vida. “A gente vê isso todos os dias”, afirma Luciana Ballesteros, fundadora da Financial Experts e especialista em finanças comportamentais. Ela lembra que as decisões sobre dinheiro deixaram de ser tratadas por pesquisadores como um mero exercício de matemática: desde a década de 1970, estudos de economia comportamental – área que rendeu prêmios Nobel a nomes como Daniel Kahneman e Richard Thaler – mostram que emoções, vieses e experiências passadas pesam mais que cálculos racionais. “Quem decide como usar o dinheiro é o ser humano, permeado por medos, angústias, impulsos”, reflete.
Quando poupar demais se torna perigoso
Do lado dos que vivem aquém, avalia a especialista, o motor costuma ser o medo. São pessoas que poupam compulsivamente, às vezes a ponto de adiar uma cirurgia necessária ou recusar um plano de saúde melhor. “O pavor de repetir a falta que viveram na infância é tão forte que a conta bancária vira intocável”, comenta. Esse comportamento encontra menos representantes midiáticos, é verdade. Talvez, porque fosse mais comum em outros tempos. Ballesteros cita que a atitude é mais comum em idosos – “são pessoas que viveram em uma época de maior instabilidade econômica e que podem ter mais apego a ter uma poupança”, contextualiza.
A psicóloga Keila Calil corrobora. “Esse tipo de comportamento geralmente nasce de experiências de escassez, principalmente na infância. Quando a pessoa cresce em um ambiente onde o dinheiro era motivo constante de preocupação, o cérebro aprende que a qualquer momento tudo pode faltar. Esse 'modo sobrevivência' é ativado mesmo quando a conta bancária já mostra um cenário confortável”, situa. “Isso afeta diretamente a autoestima, porque o recado interno que ela envia para si mesma é: 'Eu não mereço viver melhor'”, complementa.
De fato, a reportagem ouviu casos como o de uma senhora que, apesar de patrimônio confortável, dividia comprimidos ao meio para “fazer render” o remédio contra hipertensão. Os filhos precisaram passar a comprar a medicação às escondidas para evitar que ela sacrificasse a própria saúde. “Este é um limite extremo”, menciona, ponderando que outros tipos de renúncia, que podem soar inconcebíveis para outras pessoas, não devem ser estigmatizados – “como aquela pessoa que poderia ter um carro melhor, mas decide não fazer esse gasto, porque, para ela, o sofrimento envolvendo uma nova despesa vai ser maior que o prazer de ter aquele bem”.
Os gastadores compulsivos
Se o poupador radical sofre em silêncio, o gastador compulsivo não costuma passar despercebido. “Hoje as redes sociais vendem status 24 horas por dia. É difícil chegar em casa, abrir o aplicativo do banco e aceitar viver dentro da própria realidade depois de ver alguém viajar seis vezes por ano e te dizer que você também pode”, comenta a consultora, evocando as “Maria de Fátima” contemporâneas, com seus smartphones do ano parcelados em dezenas de vezes, roupas de grife divididas em muitas parcelas e diárias de hotel que caberiam melhor no orçamento de um herdeiro. Só que, mais rápido que na novela, a realidade costuma bater à porta.
“É um comportamento perigoso, que leva ao endividamento. E o Brasil tem uma das taxas de juros em cartão mais altas do mundo, acima de 120% ao ano. Para muita gente, então, essa dívida vai se tornando impagável”, alerta Ballesteros.
O impacto emocional também cobra seu preço. “Como manter a cabeça no trabalho se dez bancos ligam todo dia? Tem gente que entra em depressão, que acredita que não tem mais jeito”, observa. Segundo levantamento recente do Serasa, 77 milhões de brasileiros estavam inadimplentes em maio deste ano. Do total, 27,85% tinham dívidas bancárias e/ou com cartão de crédito. “Boa parte dessas pessoas convive com sentimento crônico de fracasso. O equilíbrio financeiro é um pilar de estabilidade de vida, não apenas de conforto”, resume a especialista.
Keila acrescenta que, em alguns casos, esse padrão pode estar ligado a quadros psiquiátricos, como o transtorno afetivo bipolar (em fases de hipomania ou mania). “Mas, na maioria das vezes, nem é preciso haver um diagnóstico para que esse padrão cause estragos”, situa. “O resultado é um ciclo perigoso: dívida, culpa, sensação de fracasso, mais consumo e o problema se repete”, adverte.
Cuidado e tratamento
Luciana Ballesteros sugere que, para identificar se o desconforto com dinheiro já virou dismorfia, é preciso honestidade com números e com as emoções. “A decisão financeira é sempre financeira e emocional”, reforça, recorrendo à pirâmide de Maslow, que descreve as necessidades humanas de forma hierárquica. “Quando a pessoa sacrifica a base – saúde, alimentação, segurança – para economizar ou para consumir, estamos diante de um sintoma grave”, aponta.
A especialista sugere duas frentes de tratamento. A primeira é psicológica, para desmontar crenças e medos: “Sem entender o gatilho emocional, a planilha não se sustenta”, avalia. A segunda é técnica: renegociação de dívidas, revisão de orçamento e, quando possível, orientação de um planejador financeiro.