Chegou a hora de colocar o corpo no divã. O que pareceria óbvio não tem sido bem assim nas consultas terapêuticas. Acostumadas a tratarem os pacientes através do diálogo, com foco na mente de quem procura ajuda, as terapias têm sido reinventadas por métodos novos, como, por exemplo, aquela designada sexologia somática. É o que explica Tami Bhavani, sexóloga, terapeuta tântrica e colunista de O TEMPO.
“A sexologia somática é uma abordagem vivencial. Enquanto a terapia sexual convencional trabalha mais no campo do diálogo, da escuta e da mente, a sexualidade somática convida o corpo para a conversa. Nós usamos respiração, toque, movimento e consciência corporal para acessar memórias, emoções e sensações que muitas vezes não podem ser expressas apenas com palavras. O corpo guarda tudo, traumas, prazeres esquecidos, limites não respeitados, e é nele que começamos o processo de cura e reconexão”, salienta a especialista.
Ela ressalta que “o trauma sexual não mora apenas na lembrança, ele se aloja no corpo”. “Pode aparecer como congelamento, dor durante o toque, anestesia emocional ou até uma desconexão total com o próprio desejo. A sexualidade somática entende isso profundamente. Por isso, ao invés de apenas falar sobre o que aconteceu, convidamos o corpo a participar da cura”, reforça. Para tanto, Tami conta que se cria “um espaço seguro e sagrado, onde o cliente é guiado a se reconectar com suas sensações, a reconhecer seus limites e a reaprender a dizer ‘sim’, ‘não’ e ‘talvez’ com clareza e autonomia”. “É um processo profundamente empoderador, que devolve a soberania do corpo a quem foi silenciado ou invadido”.
Abordagem
Tami esclarece que a abordagem da sexualidade somática é “fundamentada no consentimento e no toque consciente, inspirada tanto na filosofia tântrica quanto nos ensinamentos de estudiosos como Wilhelm Reich e Alexander Lowen, que enxergavam no corpo a expressão viva das nossas emoções, bloqueios e também do nosso potencial orgástico”. “Aos poucos, à medida que a energia vital volta a circular, o corpo se abre novamente para o prazer, para a confiança e para o amor”. O processo pode ser individual ou acompanhado de um parceiro.
“A sexualidade somática é, antes de tudo, um caminho de autoconhecimento. É sobre aprender a escutar o corpo, reconhecer seus limites, seus desejos, suas pausas e suas vontades. Tudo começa com você. Muitas pessoas chegam sozinhas, em busca de reconexão com o próprio corpo, e saem com uma nova relação consigo mesmas, mais vivas, confiantes, sensíveis e conscientes do que sentem e precisam. E, às vezes, é justamente esse mergulho individual que abre a porta para transformar a relação com o outro. Porque quando você se conhece, se respeita e se ama, é natural que isso se reflita nos vínculos que você constrói”, afiança a especialista.
Ela destaca que “ter um parceiro ou parceira pode ser uma extensão linda do processo, mas não é uma condição”. “O prazer, o afeto e a cura também podem florescer em si. E é nesse florescer que muitos reencontros internos e externos acontecem”, defende. Tami descreve as práticas de trabalho envolvidas na sexologia somática como “simples e ao mesmo tempo potentes, como respiração consciente, toques de presença, mapeamento sensorial do corpo, exercícios de movimento espontâneo e até rituais com espelho, onde a pessoa é convidada a olhar para a própria vulva, ou qualquer parte do corpo, com mais amor e curiosidade do que julgamento”. “São convites para sair do piloto automático e voltar a habitar o corpo com delicadeza”, resume.
Singularidade
Para Tami, é preciso ter em mente que “cada corpo é um universo cheio de histórias, traumas, desejos e silêncios”. Esse entendimento leva a sexologia somática a adotar “uma condução sempre personalizada”. “Podemos trabalhar com meditações ativas, respirações conectadas, exercícios de bioenergética e exploração do próprio corpo, incluindo o toque íntimo e o mapeamento genital, sempre com muito respeito aos limites de cada um. Cada sessão é um convite único para ampliar o fluxo de consciência orgástica e permitir que a energia vital circule com mais liberdade”, diz.
Tami acredita que “quando o corpo se sente seguro, ele fala”. “E, nesse espaço seguro, ele começa a revelar prazeres que estavam adormecidos, emoções esquecidas e também novas possibilidades de sentir a vida”. A sexóloga pondera que “questões como disfunção erétil, falta de libido ou dificuldade em atingir o orgasmo” não são vistas por esse ramo terapêutico como “problemas a serem consertados, mas como sinais de que algo no corpo e na alma precisa ser escutado com mais presença e compaixão”.
“Ao invés de focar apenas na performance ou em técnicas para ‘resolver’ um sintoma, olhamos para o que está por trás, como traumas não elaborados, crenças limitantes, repressões emocionais, medo de se entregar, vergonha, tensão crônica. Tudo isso pode afetar a forma como a energia sexual circula no corpo”, defende Tami. Ela garante que, “muitas vezes, ao aliviar a pressão do desempenho e cultivar presença, o corpo responde com mais espontaneidade, sensibilidade e potência”.
Toque
Tami não tem dúvidas de que “o toque é uma das ferramentas mais potentes na sexualidade somática, porque ele acessa lugares que as palavras não alcançam”. “É através do toque consciente, presente e respeitoso que o corpo começa a se sentir visto, escutado e, muitas vezes, curado”. No entanto, é primordial que essa ferramenta seja utilizada “de forma ética e segura”.
“O papel do consentimento é inegociável. Um terapeuta que facilita o fluxo de consciência orgástica precisa, antes de tudo, ter um compromisso com a integridade profissional. Isso inclui a apresentação clara do termo de consentimento, o alinhamento das intenções da sessão e o respeito absoluto aos limites, tanto do cliente quanto do próprio terapeuta”, orienta.
Nesse sentido, ela conta que “cada sessão é construída com base na comunicação transparente, e o cliente é sempre incentivado a expressar seus ‘sim’, seus ‘não’ e seus ‘ainda não’”. “Também utilizamos materiais de biossegurança para garantir o cuidado mútuo, preservando a saúde física e emocional de todos os envolvidos. Mais do que um simples toque, o que oferecemos é um espaço onde o corpo pode, enfim, confiar”, arremata.
Influência das redes sociais
A sexóloga somática Tami Bhavani passou por um episódio curioso recentemente. Assistindo a um documentário sobre pornografia, ela se pegou refletindo acerca do papel das redes sociais na sexualidade contemporânea. “Elas expandem, todos os dias, uma noção distorcida do corpo e da nossa sexualidade. Somos constantemente bombardeados por imagens que moldam o corpo ideal, o prazer ideal, a performance perfeita. Isso vai gerando um tipo de anestesia emocional, como se o nosso corpo real, com suas curvas, pausas, ritmos e vulnerabilidades, não fosse suficiente”, aponta.
Para ela, “essa falsa ideia do que é ‘normal’ ou ‘desejável’ pode gerar bloqueios profundos, como vergonha do próprio corpo, medo de se entregar, sensação de inadequação, dificuldade de se excitar ou até de se permitir sentir”. “Afinal, como acessar o prazer se estamos desconectados daquilo que somos, tentando alcançar um padrão que nunca nos representa por inteiro?”, questiona.
Tami enfatiza que “a sexualidade somática propõe exatamente o contrário: uma volta para dentro”. “Ela nos ensina a desacelerar, a escutar nosso corpo sem filtros, a cultivar uma presença amorosa. Ao invés de imitar modelos prontos, convidamos cada pessoa a descobrir o seu jeito único de sentir, de se tocar, de gozar a vida. Quando voltamos a habitar nosso corpo com verdade, abrimos espaço para uma sexualidade mais livre, mais humana e muito mais prazerosa”, conclui.