Autocuidado

Atividades manuais, jardinagem e horticultura são aliadas do bem-estar

Práticas têm viés terapêutico e auxiliam no controle do estresse e da ansiedade


Publicado em 25 de fevereiro de 2021 | 03:23
 
 
 
normal

A história de Soraya Belusi, 39, com a jardinagem é um tanto curiosa. Embora tenha convivido desde a infância com a presença de plantas, que eram cultivadas por sua mãe, a verdade é que elas eram percebidas com uma certa distância, como apenas acessórios que traziam beleza para um ambiente, mas que pareciam quase que seres inanimados. Em 2019, mudou-se dessa casa cheia de verde para um apartamento térreo, onde passou a viver com seu parceiro. Lá, se viu confrontada por uma ampla área privativa, que poderia ser um jardim, mas que estava abandonada. “Então, comecei a cuidar desse espaço e fui pegando gosto. Notava que aquele era um momento que me trazia bem-estar, me deixava bem”, lembra, citando que, à época, enfrentava um quadro de distúrbio caracterizado por um estado de constante tensão emocional.

Sem que, em um primeiro momento, se desse conta, ao cuidar da área comum do prédio em que havia se instalado, Soraya inaugurou uma nova rotina, que significou, sobretudo, um olhar mais atento para si própria. Esse movimento também representou um resgate da consciência da natureza do humano como parte de um mundo natural que nos precede e do qual somos parte – uma compreensão que é comum aos praticantes dessas atividades segundo examina a Associação Argentina de Terapia Hortícola em um documento publicado em 2013.

Vale dizer que, de fato, o cuidado de jardins e de hortas vem sendo reconhecido como uma atividade terapêutica. São técnicas que atuam na prevenção de doenças e que integram o tratamento de diversos transtornos psicológicos. Não por acaso, apesar de ainda não estar, oficialmente, listado na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Sistema Único de Saúde (SUS), o cultivo de vegetais aparece no hall de iniciativas recomendadas por profissionais de saúde à população. Há, inclusive, registros de diversos projetos que levam esse contato com a terra para dentro dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), instituições que visam à substituição dos hospitais psiquiátricos e de seus métodos para cuidar de afecções psiquiátricas.

Tempo presente. O psicólogo Leonardo Morelli é um desses especialistas que reconhecem que atividades manuais, de maneira geral, podem auxiliar no controle e no manejo da ansiedade e do estresse. Ele próprio, aliás, dedica parte de seu dia ao cultivo de quase uma centena de orquídeas. “Não sei como começou essa paixão, nem quando. Certeza mesmo é que essa prática, esse contato, é muito benéfico para mim”, garante. “A gente se desliga de outras preocupações, porque precisa atender as necessidades dessas plantas. Por isso, entramos em um processo de autoconcentração, quase uma auto-hipnose”, analisa.

E se, resumidamente, transtornos ansiosos estão ligados a um estado de sofrimento em relação ao futuro e sintomas depressivos estão associados a episódios penosos do passado, o estar no presente que as atividades manuais demandam pode trazer, por si, o estado de bem-estar que Soraya descobriu quando passou a se dedicar à jardinagem. “Quando estamos entregues a uma prática, entendendo que estamos no aqui e agora, que o foco não é o ontem ou o amanhã, nosso cérebro consegue relaxar, saindo de um estado de excitação por conta desse excesso de estimulação e de cobrança. Com isso, liberamos hormônios antiestresse e que ampliam a sensação de prazer”, detalha o psicólogo.

Bordados. Leonardo Morelli cita que não só a jardinagem e horticultura, como também outros trabalhos manuais, trazem esses benefícios a seus praticantes. “Minha mãe (Maria de Lourdes), aos 89 anos, faz bordados. É algo que ocupa o tempo dela, que faz com que se sinta produtiva, fortalecendo, inclusive, sua autoestima”, comenta.

Dedicação ao cuidado de vegetais exige uma saudável desaceleração

Há ainda outros ganhos, como uma possível sincronização do ritmo circadiano (período de 24 horas sobre o qual se baseia o ciclo biológico de quase todos os seres vivos), o que vai conferir ao sujeito uma melhor homeostase (condição de relativa estabilidade da qual o organismo necessita para realizar suas funções adequadamente para o equilíbrio do corpo).

Essa regulação de ciclos, quando indivíduo e meio dialogam em um mesmo tempo, é apontada como benéfica para a saúde como um todo, trazendo ganhos, por exemplo, para o sistema imunológico, e está relacionada ao fato de o praticante da jardinagem ou da horticultura precisar respeitar os processos naturais de desenvolvimento das plantas, algo que dificilmente pode ser acelerado – o que acaba se revelando um contraponto à atribulada rotina dos moradores de grandes centros urbanos. Esse fenômeno foi percebido por Soraya Belusi. 

“Há uma mudança de sensibilidade, a começar pelo contato com a terra, que já é uma reconexão com a natureza. É um movimento muito forte, energizante. Tem a coisa de não pensar em nada, como se minha meditação fosse cuidar do jardim. E também esse respeito ao processo natural, que não vai atender nossa afobação, nosso imediatismo. Além disso, estar envolta de beleza é algo que traz alegria”, sinaliza, fazendo questão de sublinhar: “E quem me conhece sabe que não gosto desse papo meio ‘hippie’. Estou falando de uma experiência muito pragmática, do que tenho vivido mesmo”.

A descoberta do prazer ao se dedicar ao cuidado de vegetais reverberou no desejo de se profissionalizar. Ela, então, fez cursos profissionalizantes de jardinagem e, quando a pandemia de Covid-19 chegou ao país, iniciou um projeto novo, em que realizou doações de mudas de plantas gratuitamente. “Senti que era algo que eu poderia fazer pelas pessoas para que elas também pudessem fazer algo por si mesmas”, diz. De lá para cá, o passatempo vem se tornando, pouco a pouco, sua principal fonte de renda.

Momento de tensão. Indicando que a proposta de Soraya é mesmo acertada, o psicólogo Leonardo Morelli concorda que, com a emergência de saúde, tarefas manuais se tornaram uma alternativa para o controle do estresse e da ansiedade. “Ficou escancarado como não temos controle sobre o mundo, e isso deixou todos apreensivos. As pessoas estão preocupadas com o futuro, estão tensas. Sem dúvida, essas atividades podem contribuir para minimizar esse sofrimento e trazer algum bem-estar”, pondera.

Estudos indicam benefícios diversos

Analisando 15 artigos de projetos, executados entre 2006 e 2015, que observaram a horticultura por um viés terapêutico e que envolveram 436 pessoas atendidas em Centros de Atenção Psicossocial (Caps), a pesquisadora Thaís Sampaio de Souza sinaliza que todos “trouxeram progressos para os pacientes que participaram, além de aproximar e firmar vínculos com o serviço de saúde e os demais pacientes, propiciando um espaço de troca e aprendizados”.

Em seu projeto de conclusão de curso em psicologia, Thais indica que 46,7% dos trabalhos analisados destacaram que as atividades reverberaram em uma melhora psíquica dos atendidos, que incluíam portadores de transtornos, idosos e usuários de substâncias psicoativas. Benefícios para a autoestima são citados por 40%, e o sentimento de ser útil, o resgate do conhecimento popular e o relacionamento social, por 26,7%. Os artigos avaliados também destacam o exercício da cidadania e o desenvolvimento de habilidades interpessoais em 20% das vezes.

Intervenção médica. Atento às evidências de benefícios para a saúde e o bem-estar relacionados às atividades manuais, o otorrinolaringologista Dário Antunes passou a receitar a seus pacientes pequenas tarefas, incluindo o trabalho diretamente com a terra. “Anteriormente à pandemia, costumava levá-los para locais em que poderiam trabalhar em uma horta. E os resultados eram visíveis. As pessoas saíam dali com outra expressão, com outra postura. Eu seria leviano se tentasse explicar”, afirma.

Antunes conta que o projeto surgiu quando, observando a própria rotina de atendimentos clínicos, percebeu que “as pessoas, na maioria das vezes, adoeciam mais por angústia, estresse, cansaço mental do que por outras causas”. “E, por isso, entendi que somente remédios não iriam solucionar o problema”, diz, expondo ter percebido que trabalhos artesanais poderiam integrar o tratamento proposto por ele. “No começo, eu orientava meus pacientes a fazer artesanato, pintura, bordado… Com o tempo, decidi criar uma forma de levá-los a campo para que tivessem contato com a natureza”, complementa.

Benefícios são reconhecidos pelo menos desde o século XVIII 

“Datada desde o Egito Antigo, quando foram observados os primeiros benefícios terapêuticos, a horticultura ficou adormecida durante alguns séculos e, somente na década de 1790, com trabalhos do Benjamim Rush, ela veio a ser apreciada pela comunidade científica. Em 1798, ele, que era professor do Instituto de Medicina e Práticas Clínicas da Pensilvânia, anunciou que havia encontrado campo de trabalho curativo nas atividades de horticultura com pacientes com transtornos mentais e, dessa forma, difundiu para o mundo essa nova técnica”, registra Thaís Sampaio de Souza no estudo “Horticultura como Tecnologia de Saúde Mental”.

A psicóloga inteira que poucos anos depois, em 1806, em um Hospital da Espanha, “trabalhadores da saúde incentivaram a horticultura e a jardinagem nos programas para pacientes com transtornos mentais. Em 1879, o primeiro Hospital Psiquiátrico particular da Filadélfia, inaugurado em 1813, conhecido como Friends Hospital, concretizou o início dos trabalhos com horticultura enquanto terapia, com a instalação de uma casa verde para tratamento dos pacientes”.

Entretanto, somente nos anos de 1900 é que a horticultura enquanto terapia se consolidou de fato, aponta a autora. Pioneiro nessa empreitada, em 1919, “Charles Frederick Menninger inaugurou, no Kansas (Estados Unidos), uma fundação com seu nome – Menninger Foundation –, que abriu as portas para os estudos com plantas, jardins e natureza como parte integrante do dia a dia dos pacientes. Entre os anos 1920 e 1930, atividades de horticultura começaram a aparecer em livros e palestras. Na década de 1940, na Suécia, a ideia de que a jardinagem e/ou horticultura transpareciam o ritmo do tempo, perpassando claramente as estações do ano e possibilitando a conclusão de ciclos foi marcante, fazendo com que muitos hospitais psiquiátricos adotassem a prática”, completa Thais, citando como, gradualmente, a técnica foi se tornando mais disseminada.

“Atualmente, a horticultura terapia é praticada em diversos países como Estados Unidos, Suécia, Reino Unido e Portugal, em instituições como: escolas, casas de repouso, prisões, residências terapêuticas, hospitais psiquiátricos, centros de reabilitação física e centros para dependentes químicos. No Brasil, essa técnica começou a se difundir no início dos anos 2000 e (desde então) vem ganhando espaço nos diversos equipamentos de saúde”, conclui.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!