A morte da modelo e influenciadora Liliane Amorim no último dia 24, aos 26 anos, por complicações decorrentes de uma modalidade de cirurgia de lipoaspiração, chamada de “lipo lad” – que teria provocado perfurações no intestino –, acendeu o necessário debate sobre os possíveis riscos de se submeter a procedimentos estéticos na busca por um corpo culturalmente idealizado. Uma discussão especialmente importante no Brasil, país com o maior número de intervenções plásticas do mundo, segundo o levantamento divulgado em dezembro pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, na sigla em inglês). Detalhe: de cerca de 1,5 milhão de pacientes que realizaram esses tratamentos em 2018, as mulheres representam 87,4%.

Embalada pelas discussões suscitadas pelo trágico episódio que tirou a vida de Liliane, a empresária e influenciadora Thaynara OG decidiu falar sobre a experiência traumática que ela própria enfrentou depois de ter passado por esse mesmo tipo de intervenção. Em suas redes sociais, a maranhense relatou que, por uma intercorrência cirúrgica, teve grande perda de sangue e precisou ser internada em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Eu ficava com muita vergonha, muita culpa. Eu pensava: ‘Poxa, estava boazinha antes e me coloquei nessa situação’”, revelou em conversa com Fátima Bernardes no programa “Encontro”, da Rede Globo. De acordo com levantamento da emissora, nos últimos sete meses, pelo menos nove brasileiras morreram em consequência de procedimentos estéticos que deram errado.

Todo esse cenário aponta para dois principais problemas. De um lado, há a pressão estética, que atinge a todos, mas que afeta fundamentalmente as mulheres, e, de outro, a perigosa banalização das cirurgias plásticas.

“É adoecedora a forma como é estruturado o ideal de beleza”

“A sociedade cobra que a mulher se esforce na busca por se encaixar em padrões de beleza construídos culturalmente, ao longo da história, e que, muitas vezes, são irreais”, pontua a psicóloga especialista em educação e saúde Eliza Carla Sirino Nunes. São efeitos imediatos desse fenômeno a insatisfação em relação ao próprio corpo, que repercute em insegurança, e o desenvolvimento de transtornos diversos, principalmente aqueles relacionados a uma lida conflituosa com a alimentação e com a autoimagem, como a compulsão alimentar, a anorexia e a bulimia. “O caso da Liliane Amorim reflete esse contexto. Mesmo estando muito próxima dos padrões estéticos socialmente cobrados, ela sente que precisa se submeter a uma intervenção cirúrgica, porque o real não basta. É adoecedora a forma como é estruturado o ideal de beleza”, avalia.

Na avaliação de Eliza, as redes sociais potencializaram a pressão estética. “Hoje, se a gente pega o celular, não sabemos como as pessoas são de verdade, porque estão cobertas por filtros”, sinaliza, fazendo referência às ferramentas muito comuns em aplicativos como o Instagram, focando principalmente o compartilhamento de fotos e de vídeos curtos. “O uso desses recursos vai ficando tão habitual, que pode se tornar difícil para essas pessoas conviver com a própria imagem. Há um recondicionamento do olhar para si mesmo, então a gente passa a acreditar que esse corpo real, tal como ele é, não será aceito, porque a realidade já não é suficiente”, critica.

A psicóloga acrescenta que o quadro geral das desigualdades no Brasil faz com que o corpo seja lido como uma possibilidade de ascensão social. “Quando o acesso ao ensino é bloqueado, quando as possibilidades de emancipação são raras, o corpo se torna um capital. E, por isso, vai ser alvo de investimento. Não é à toa que as pessoas têm feito qualquer coisa, até colocar a vida em risco: elas buscam acessar um lugar de aceitação que permita romper com essas barreiras”, examina.

“Devemos ter cuidado para não banalizar as cirurgias plásticas”

Quando a primeira lipoaspiração foi realizada no Brasil, em um hospital do Rio de Janeiro, nos anos 80, o cirurgião Luiz Haroldo Pereira estava presente. Pioneiro nesse tipo de intervenção, ele é crítico de excessos e da vulgarização desses procedimentos. “Percebo que, hoje, muitas vezes as pessoas se deixam guiar apenas pela fantasia, estão suscetíveis e acabam se guiando pelas redes sociais, por aquelas clínicas que prometem soluções e fazem propaganda até mesmo enganosa”, observa. Ao mesmo tempo, o membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) garante: “Esses tratamentos são seguros desde que feitos por profissionais habilitados, em pacientes que estão aptos e em ambiente hospitalar adequado”.

Pereira demonstra preocupação com a banalização da lipoaspiração, algo que, diz, pode ser percebido ao se observarem os diversos títulos comerciais que a técnica ganha a cada ano. “Há muitos nomes de fantasia. Tivemos, há um tempo, a lipolight e a hidrolipo, que prometiam ser mais simples e que, por isso, poderiam serem feitas em consultórios, o que não é verdade, (pois) qualquer lipo deve ser feita em ambiente hospitalar, até mesmo para o caso de haver qualquer intercorrência. Houve ainda a lipolaser, da qual ninguém mais fala, porque não funciona”, assevera. 

Agora, surgem a lipo lad e a lipo hd, que foram lançadas originalmente na Colômbia. “O cirurgião (que criou a técnica), de início, criava ‘gominhos’ falsos, criava uma definição muscular falsa nos pacientes”, observa Pereira, complementando que, hoje, deixou-se de fazer esses desenhos artificiais. “O que se faz atualmente é aspirar muita gordura para realçar a musculatura que a pessoa já possui, mas que estava escondida por essa gordurinha localizada. Só que, às vezes, a retirada é tão excessiva que pode haver até mesmo necrose da pele”, informa.

O cirurgião avalia que, por ser um método novo, ainda há pouca informação sobre eventuais problemas. Algumas dificuldades, no entanto, já são perceptíveis. “O pós-operatório, no caso de lipoaspiração tradicional, não deve ser complicado. Todo o procedimento, em geral, vai acontecer nessa sequência: a pessoa faz os exames necessários. No dia, se instala no hospital e recebe a anestesia, sendo operada. Ela fica um dia em observação, depois pode se movimentar e ir para casa, onde vai ficar por entre dois e quatro dias. Nesse tempo, deve se alimentar normalmente, hidratar-se bem e usar cinta por três semanas. A drenagem linfática é indicada para desinchar. Em cinco dias não terá mais dor”, pontua. No entanto, “se o profissional quiser definir o músculo, raspando-o, a cirurgia vai ser traumática e acarretará mais dor e por mais tempo”, avisa.

“Há muito abuso”

O cirurgião Luiz Haroldo Pereira lamenta que sejam recorrentes abusos de diversas ordens, com clínicas oferecendo procedimentos sem ter estrutura adequada, profissionais de especialidades diferentes realizando operações, e outros recorrendo a métodos publicitários apelativos, que contrariam as normas estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).

Vagner Rocha, diretor-secretário da regional mineira da SBCP, concorda. “Eu repreendo veementemente esse tipo de postura”, afirma, fazendo referência ao excesso de publicidade, muitas vezes desleal, desses tratamentos. Algo que, aliás, se percebe no relato de Thaynara OG. “Quando eu fiz, tinham me oferecido permuta (em vez de pagar pelo serviço, deveria divulgar o trabalho do médico e da clínica responsáveis)”, contou na entrevista com Fátima Bernardes, sublinhando que este é um recurso muito comum no mercado das influenciadoras. “(Mas não aceitei), porque eu sei como essa indústria de cirurgia plástica contribui para aumentar a pressão estética, tanto é que eu, que trabalho com isso, fui influenciada e tomei essa decisão de fazer com um médico que eu não conhecia, porque eu queria aquilo que estava vendo nas fotos, sendo que cirurgia plástica é muito do que a gente fantasia em torno dela”, completou.

Ocorre que, além de contribuir para a pressão estética, esse tipo de publicidade é vetado pelo CFM e pelo SBCP, como informaram os cirurgiões ouvidos pela reportagem. Também são proibidas as divulgações de fotos de antes e depois. “Isso porque há grande chance de propaganda tendenciosa, já que o profissional vai colocar ali apenas os seus melhores trabalhos, criando uma ilusão no paciente”, explica Rocha.